Lume Teatro | Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp | 30 anos de existência
02/09/2015 - 13:36
Com 30 anos de existência, o Lume teve suas origens estruturadas na experiência de seu fundador, Luís Otávio Burnier e em seus anos de treinamento como aluno, em pesquisas com vários mestres do teatro e em estudos do teatro oriental.
O coletivo é formado por sete atores fixos e é referência internacional para artistas e pesquisadores no redimensionamento técnico e ético do ofício de ator. Desde 1994, com sede em Barão Geraldo, distrito de Campinas, em São Paulo, o grupo oferece diversas atividades para a formação de artistas.
Em entrevista, a produtora do Lume Cynthia Margareth e o ator Renato Ferracini compartilham os principais desafios de gestão do grupo, dos processos artísticos, das pesquisas e das ações formativas voltadas para artistas, além do projeto itinerante Casa Lume.
Cynthia Margareth ‒ Bacharel em artes cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, estagiou com o Teatro Potlach, da Itália. Há dez anos produz o Lume Teatro, coordenando a produção dos espetáculos do grupo, circulações, temporadas nacionais e internacionais e a gestão dos projetos formativos e de montagem/criação. Coordenou a produção de grandes projetos, como o espetáculo multimídia
Perch ‒ uma Celebração de Voos e Quedas (com grupos da Escócia e da Austrália, com mais de 200 artistas em cena e duas orquestras sinfônicas, para um público de 20 mil pessoas). Instigada pela responsabilidade social, acredita no impacto dos festivais em uma cidade e na força dos encontros e, assim, integra desde 2006 a produção do Feverestival – Festival Internacional de Teatro de Campinas.
Renato Ferracini ‒ Desde janeiro de 1993, é ator-pesquisador-colaborador integrante do Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolvendo pesquisas na codificação, na sistematização e na teatralização de técnicas corpóreas e vocais não interpretativas para o ator em todas as linhas de trabalho, além de uma metodologia de formação e sua difusão.Fez pós-doutorado coordenando o projeto interinstitucional Jovem Pesquisador ‒ Aspectos Orgânicos na Dramaturgia de Ator, que agrupa nessa linha de pesquisa atores-pesquisadores do Lume/Unicamp e da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). É professor credenciado na pós-graduação do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, foi professor convidado na pós-graduação em artes da ECA/USP e atualmente orienta mestrados, iniciações científicas e pós-doutorados. É doutor pelo Departamento de Multimeios do IA/Unicamp e defendeu o mestrado pelo mesmo departamento, tendo feito seu bacharelado em artes cênicas também na Unicamp. Participou como ator nos seguintes espetáculos do Lume: Taucoauaa Panhé Mondo Pé, Contadores de Estórias, Mixórdia em Marcha-Ré Menor, Afastem-se Vacas que a Vida É Curta, Parada de Rua, Café com Queijo, Shi-Zen, 7 Cuias (indicado ao Prêmio Shell 2004 nas categorias Luz, Música e Especial ao Lume, pela continuidade da pesquisa teatral no Brasil) e O que Seria de Nós sem as Coisas que Não Existem ‒ os três últimos ainda em repertório. Também é ator no espetáculo Os Bem-Intencionados (Lume Teatro, 2012), dirigido por Grace Passô. Participou de Perch – uma Celebração de Voos e Quedas ‒ projeto internacional que realizou um grande espetáculo ao ar livre nos dias 19 e 20 de julho de 2014, transmitido simultaneamente para o Brasil e a Escócia. Desde 1990, vem fazendo intercâmbios de trabalho e pesquisa com vários profissionais no Brasil e em outros países. É editor da Revista do Lume, autor de vários livros e possui artigos publicados nas principais revistas e anais de artes cênicas do Brasil.
O Lume, quando foi fundado, não tinha sede própria (por aproximadamente nove anos) até conseguir o apoio institucional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), levando à criação do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, localizado em Barão Geraldo, distrito de Campinas, em São Paulo. Comente se essa dificuldade inicial fez com que o grupo pensasse novas formas de gestão para sua sobrevivência e as adotasse.
Em realidade, o Lume já nasce de forma institucional, pois é gerado como um laboratório vinculado ao Instituto de Artes [IA]. Como laboratório, ele não tinha o mesmo status de um núcleo interdisciplinar na universidade e, portanto, a questão financeira era precária. A reitoria havia dado apenas um salário a um ator e não havia nenhuma sala para treinamento dentro da universidade. O Lume teve então de realizar seu trabalho, nos primeiros anos, em um salão de igreja na Vila Santa Izabel, fora do campus.
Se por um lado havia a dificuldade gerada por essa precariedade inicial financeira e de infraestrutura, as soluções encontradas fizeram com que o Lume se aproximasse da comunidade de Campinas e, mais especificamente, de Barão Geraldo. Essa ação rende frutos positivos até os dias atuais, pois essa aproximação e esse pensamento estão no Lume hoje, e nossa sede ainda é fora do campus. Convém dizer que a Unicamp se organiza de forma muito parecida com as outras universidades, com seus institutos e suas faculdades. Ela também, desde que foi criada, se propôs a definir institucionalmente outro modo de arranjo de pesquisa, chamado internamente de Sistema de Centros e Núcleos.
Esse sistema formal de organização nasceu com o intuito de promover a interdisciplinaridade e a autonomia da investigação e, portanto, os centros e os núcleos não são vinculados a nenhum instituto ou faculdade. São 21 unidades de pesquisa autônomas, institucionalizadas e independentes vinculadas diretamente à reitoria e que possuem, até mesmo, uma carreira própria: o pesquisador, chamado na Unicamp de Pq, “liberado” das aulas na graduação para focar efetivamente nossas ações na pesquisa interdisciplinar. O que aconteceu depois de nove anos de Lume foi que ele passou de laboratório do IA a um desses núcleos interdisciplinares de pesquisa.
Quais são os principais desafios para dirigir um grupo que tem 30 anos de bagagem?
Do ponto de vista artístico, cada vez mais é desafiador, pois uma das características necessárias para que um coletivo criativo chegue à marca de 30 anos e a ultrapasse é a inquietude, e não a normatização ou o descanso da ação criadora. Como nos puxar o tapete? Como descobrir outras formas de ação cênica? Como compor de outros modos as montagens? Essas são perguntas que não nos deixam parar. Aqui não há chefes. Somos sete atores, e sermos sete atores sem chefes somente significa que são sete atores chefes. Ter 30 anos e querer continuar é verificar a possibilidade de ainda achar fendas e buracos de respiro, tanto nas relações pessoais e profissionais quanto no ato criativo.
Transcrevo aqui algo que escrevi há algum tempo para falar dos nossos 25 anos e que acredito ser bem atual em nossa realidade:
“Apesar da certeza dessa vontade de criar fendas e espaços para possibilidades de realização de nossos desejos, tanto individuais como de grupo, existem sobre essa greta, ao lado dela e através dela, muitas e muitas dúvidas, medos, incertezas, tristezas, decepções, inseguranças e muitos erros. Se opções iniciais nos respondem aspirações e desejos imediatos, possibilitando aberturas dessas frestas como possibilidade de criação e de pontos de resistência, permitindo oxigenar nossas inquietações, esses mesmos espaços geram, em si e através de si mesmos, estratificações e relações de poder que, rearticuladas nesse novo espaço, mostram seus dentes com forças renovadas. E, assim, novos micropontos de fuga devem ser encontrados. Nesse sentido, viver em microgrupos, nessas fendas e espaços criados de desejo e resistência, também é realizar um eterno exercício de readaptação e de renovação de opções. O que faz, hoje, grupos estarem ainda juntos depois de tantos anos é a consciência da necessidade dessa eterna renovação e da reopção. Esses grupos, vistos como espaços de possibilidade de desejo, não são, absolutamente, espaços confortáveis de convivência. Muito pelo contrário, são espaços em que, ao lado de pequenas conquistas, grandes tristezas, medos, erros e decepções ocorrem e ocorrerão, e a continuidade de existência do grupo terá de ser reconfigurada em todos os seus ciclos e nada garantirá sua existência eterna. Paradoxalmente, sabemos que, quanto mais essa força de criação grupal crescer, maior será o risco de sucumbirmos ao próprio microssistema grupal criado. Uma das poucas possibilidades de sobrevivência dos grupos cênicos contemporâneos é ter consciência mínima disso. E qualquer semelhança com as relações sociais atuais não é, definitivamente, mera coincidência”.
O Lume Teatro se destaca pelas pesquisas de artes cênicas, sejam elas entre os membros do próprio grupo, por meio de intercâmbios com outros artistas, com a comunidade local etc. Como essas influências interferem no processo criativo do grupo?
O Lume é um coletivo de singularidades. Isso significa que cada membro tem as próprias influências, os próprios desejos e as próprias vontades estéticas. Quando nos reunimos para realizar montagens coletivas, a grande dificuldade e um belo desafio que nos impulsiona sempre é como compor e inventar um evento cênico que dê conta de todas as diferenças sem buscar abrir mão de seus desejos para encontrar o denominador comum, mas sim criar um comum a partir das diferenças. Mas algo sempre nos une e encontra-se na base de sustentação do Lume desde sua criação.
E para isso preciso contar uma história. Luís Otávio Burnier, encantado de forma prematura em 1995, com apenas 38 anos, foi um docente da Unicamp que criou o Lume depois de estar na França e trabalhar durante oito anos com um grande mímico chamado Étienne Decroux ‒ considerado, hoje, o pai da mímica moderna, ou mímica abstrata. Burnier sempre nos contava uma história: quando observava Decroux em cena, ele percebia uma força que “emanava” de seu fazer e que ele denominava, metaforicamente, de “leão”. “Era como se eu visse um leão em cena”, nos dizia Burnier. Ao mesmo tempo, ele observava os alunos de Decroux e, ainda que tivessem corpos mais jovens e a técnica mais precisa, não emanavam, segundo Burnier, esse leão, essa força.
Quando Luís Otávio voltou para o Brasil, criou um grupo para investigar a seguinte problemática: é possível trabalhar esse leão ou essa força em atores, dançarinos, performadores e circenses sem a necessidade de ensinar, a priori, uma técnica codificada de atuação? Em outras palavras: é possível trabalhar no corpo dos atuadores essa força, essa potência, sem lançar mão de um protocolo prévio de expressão? Na área de artes, um exemplo do que podemos chamar de protocolo de expressão ou técnica codificada seria o balé clássico. Além de ser uma técnica codificada e um protocolo expressivo em sua culminância, todo o seu processo de aprendizagem também é normatizado. Existe uma clara pedagogia para o aprendiz de bailarino que vai de um léxico menos complexo ao mais complexo. O espaço para o leão deverá ser construído pelo bailarino por seu próprio risco e conta nos entremeios de técnicas e formas extremamente codificadas.
Portanto, o que é ensinado ao bailarino são procedimentos concretos e formais por meio de um processo pedagógico objetivo. Isso não é, em absoluto, uma crítica a esse método nem a verificação de uma impossibilidade da emergência desse leão nesse tipo de procedimento formal e objetivista. Verificamos artistas nesse plano que promovem essa emergência de forma sublime, como Nijinski. O que anseio sublinhar aqui é que Burnier, ao criar o Lume, desejou subtrair a pedagogia objetivista do treinar algo previamente codificado e já partir para a investigação da emergência concreta dessa força ou desse leão, enfim, da imaterialidade do trabalho do ator.
O Lume nasceu há 30 anos com essa problemática e a persegue até os dias de hoje. Talvez sejamos bastante incompetentes por não termos chegado a nenhuma conclusão objetiva ou mesmo a respostas concretas e científicas para essa questão. Mas essa problemática leva a muitas outras. O mais interessante é que, seja qual for o nome que se dê ao leão, estaremos falando de algo impalpável, imaterial, portanto nada concreto, objetivo ou científico stricto sensu ‒ o que nos salva, em parte, de nossa incompetência. No máximo podemos usar uma definição paradoxal para esse leão: uma espécie de concretude abstrata. Estamos falando, no limite, de uma força. Burnier criou um núcleo de pesquisas na Unicamp para pesquisar uma força, que na definição em física clássica é algo que se efetiva na relação entre dois ou mais corpos e que só pode ser mensurado pelo efeito que causa neles. Em última instância, o Lume nasce para pesquisar o que acontece entre os corpos, na relação entrecorpos. Pesquisamos maneiras de inventar relações, modos de convite a relações qualitativamente potentes. Convites e modos relacionais mediados pela poética teatral. E talvez essa base seja a única ação real e concreta que conecta sete singularidades depois de 30 anos.
O grupo tem uma pesquisa que trabalha com a linguagem do ator, principalmente sua linguagem corporal. Desse modo, transforma as pesquisas e os processos criativos em pedagogia, em workshops, em livros etc. Comente como são pensadas essas ações para a formação dos atores.
Esse é um assunto deveras complexo que já foi muito pensado e escrito no Lume. Tentarei descrever mais suscintamente como pensamos a formação, qual é o foco que buscamos e qual é o campo que investigamos, seja quando ministramos oficinas, seja quando escrevemos livros ou mesmo quando adentramos num processo criativo para a elaboração de um evento cênico. Primeiramente, sempre temos de pensar a base do Lume, que é como eu disse antes: pesquisar o que acontece entre os corpos, na relação entrecorpos. Pesquisamos maneiras de inventar relações, modos de convite a relações qualitativamente potentes. Convites e modos relacionais mediados pela poética teatral.
Como consequência dessa busca, o Lume sistematizou um conjunto de práticas de trabalho e exercícios que funcionam como dispositivos detonadores de experiências dessa força relacional, que hoje podemos chamar de efeitos de presença proporcionada pela materialidade dos corpos em relação poética no tempo-espaço. As práticas de trabalho são condensadas em cursos de pequena duração que buscam gerar, na sede do Lume e no mês de fevereiro, um espaço propício de intercâmbios práticos intensivos com pesquisadores, atores, diretores e interessados na potencialização e na intensificação desses efeitos de presença. Dessa forma, os cursos de fevereiro – e todas as ações formativas do Lume de maneira geral ‒ trabalham com alguns pressupostos que são pilares de sustentação dessas experiências de presença:
‒ Pilar um: o Lume busca trabalhar sobre uma força, e não sobre um elemento atual e técnico. A força, por definição, é um elemento invisível e relacional e afeta os corpos nessa relação. Retomando a história que contei antes, sobre a imagem do leão, podemos dizer que esse leão percebido por Burnier o afetava. Essa força não emanava de Decroux, mas fazia movimentar os corpos Burnier-Decroux em composições estéticas potentes. O leão, portanto, é uma força, e não um elemento concreto, inteligível, visível, sintetizado pela consciência, mas um elemento afetivo, relacional, invisível que altera o estado dos corpos e somente é detectado por seu efeito neles. Nos cursos, portanto, o foco é proporcionar experiências de um corpo poroso, em escuta, sempre aberto e “em relação a”.
‒ Pilar dois: sendo esse leão uma força invisível e relacional, ele não pode ser trabalhado de forma direta, objetiva, concreta e consciente, mas deve ser composto, gerado, elaborado em meios, interstícios, poros, fissuras e buracos criados nos, com e por elementos concretos. A hipótese inicial que perdura até hoje nos trabalhos do Lume é a de que o corpo é esse elemento concreto. Não somente o corpo visto em seu aspecto físico, muscular, ósseo ou nervoso, mas principalmente o corpo visto como potencialização e intensificação dessa força virtual. O corpo passa então a ser uma espécie de âncora de experiências e composição de vivências práticas que intensifica essa força ao compor essa invisibilidade (imanente a ele mesmo) com sua própria atualidade. Nas ações formativas, o corpo singular do atuador é tratado, portanto, como potência-outro-corpo intensificado nele mesmo.
‒ Pilar três: o corpo somente pode se intensificar e se potencializar em experiências de limites. São nas práticas vivenciadas nessas zonas liminares que as fissuras, os poros, os buracos de potência e a intensidade podem entrar em composição e relações outras. Quando o corpo é levado a experiências de fronteira dele mesmo, pode desmoronar padrões conhecidos, desterritorializar-se e, a partir desse território outro, reterritorializar-se, gerando, nesse movimento, não formas físicas mecânicas, mas formas de forças, como coloca o filósofo português estudioso da dança José Gil. Em outras palavras: formalizações singulares de cada atuador que engendram virtualidades e intensidades atualizadas em continuum no tempo-espaço cênico. Chamamos essas formas de força de matrizes. Poderiam ser chamadas também de ação física em sua mais potente complexidade. As ações formativas buscam levar os atuadores a experiências de limites para uma vivência possível dessas intensidades.
‒ Pilar quatro: se, por definição, as forças são relacionais, essas matrizes somente podem se compor com outras forças. As formas de força geram, portanto, zonas de jogo em que afetam e são afetadas mutuamente pelo entorno cênico, seja ele tempo, espaço, palco, outro atuador ou o público, e por ela mesma. Uma forma de força nunca é fixa, mas sempre recriada a cada instante em sua potência e sempre diferenciada em sua infinita zona de virtualidades. Portanto, mesmo que uma matriz tenha uma formalização codificada atualizada de forma singular, em sua virtualidade e em sua intensidade, ela literalmente dança e se diferencia a cada instante. Essa diferenciação tem seu território em microações e microafetos que possibilitam a “circulação” corpórea dessas virtualidades e diferenças no desenho tempo-espacial da própria matriz, fazendo com que ela se recrie nessa zona virtual. O corpo em arte como potência de diferenciação infinita em sua zona de potência. E, como composição de forças, ela ‒ a matriz – deve se deixar afetar de forma receptiva e atuar com esse afeto numa atualização em ação, mas não numa relação simples de causa-efeito afeto-ação, e sim em uma complexa “receptivatividade” corpórea sempre em seu limite.
A partir desses pressupostos-pilares, podemos inferir posturas de trabalhado balizadoras de nossas ações formativas. Essas posturas buscam uma intensificação das potências dos corpos e podem ser resumidas em três modos de ação:
‒ Postura/intensificação um: o atuador não apreende uma técnica codificada a priori, mas deve se permitir um espaço-tempo para realizar experiências de limites para uma possível desestruturação de seus padrões e a intensificação de seu corpo, gerando formas de força (estados dilatados de efeitos de presença e matrizes) que, em seu conjunto e em recriação constante, passam a ser sua técnica singular de atuação. A essa busca constante podemos dar o nome de treinamento em sua forma mais ampliada.
‒ Postura/intensificação dois: o foco de suas experiências deve estar voltado para as microssensações, os microafetos. Sua potência deve estar localizada, territorializada em sua capacidade de ser afetado, ou seja, em sua capacidade de deixar-se afetar pelo espaço, pelo tempo, pelo outro. Gerar poros de entrada em seu corpo para que esses afetos sejam seu material de trabalho primeiro. Comumente chamamos de escuta essa capacidade ampliada de deixar-se afetar. O atuador, portanto, não é um fazedor profissional de ações, pois esse não é seu objetivo primeiro (apreender técnicas codificadas), mas é um atleta afetivo (Artaud). Aquele atleta que se deixa afetar, que se territorializa em seu limite de sensação e a recompõe. E, então, com essa recomposição da sensação, age, atua com e em formas de força deixando-se afetar por elas mesmas. O atuador é um profissional do afeto que engendra a ação, e não um profissional da ação precisa e formalizada no tempo-espaço que busca gerar emoções no outro. O atuador como improvisador na zona de virtualidades. Um atleta afetivo da sensação e de um território paradoxal “receptivativo”.
‒ Postura/intensificação três: essa receptivatividade não é sintetizada pela consciência. Essa zona virtual está em um pensamento do corpo, ou uma consciência do corpo que vive no limite entre consciência e inconsciência. Não será jamais possível sintetizar, inferir, deduzir, organizar, classificar nessa zona de receptivatividade. Ela é uma zona de fluxo constante, de abertura de fluxo e intensidades que está em um limite pré-consciente, mas imanente ao corpo. Essa inconsciência de que falamos aqui não é uma essência interna nem uma supraconsciência ou uma transcendência cósmica nem mesmo o inconsciente reprimido da psicanálise, mas uma zona de produção, uma composição das intensificações da própria atualidade singular do corpo próprio, de seu desterritório e reterritório outro. A consciência dá somente o ponto de entrada para essa zona outra (zona de turbulência); ela propõe o início da experiência e acompanha atenta o fluxo que se desenrola na intensidade e na potência recomposta do corpo. A consciência do atuante sintetiza a porta de entrada para a zona de virtualidades. Ela “aprende” a abrir a porta e a deixar o fluxo sair-entrar. Não é, também, uma zona de transe, mas de um fluxo liminar de uma consciência-inconsciente.
Comente como se dá a preservação da memória e dos acervos do Lume, sejam eles figurinos, conteúdos resultantes das pesquisas e das imagens etc.
Sempre tivemos essa preocupação, mas o trabalho era executado pelos próprios atores e, durante alguns anos, contamos com o apoio de estagiárias graduandas em biblioteconomia. Entretanto, sofríamos com a falta de continuidade e de pessoal com experiência no ramo. Com isso, o volume do acervo cresceu imensamente e não conseguimos mantê-lo com a organização e o acondicionamento esperados. Essa realidade começou a mudar há três anos, e hoje vivemos um processo intenso de organização desse acervo, com a expectativa de poder disponibilizá-lo para consulta física e on-line em mais alguns anos.
Como o Lume trabalha a questão da formação de público?
Acreditamos que duas ações são necessárias para que o público comece a frequentar mais o teatro. Primeiro, qualidade; depois, a continuidade desse oferecimento qualitativo. Em nossa sede, lembro-me de espetáculos que foram cancelados porque “ninguém” apareceu. Falo de 1995, 1996. Mas insistimos... na qualidade e na continuidade. Hoje, no evento de 30 anos, 30 horas, tínhamos em nossa sede, entre 21h e 1h, cerca de 700 pessoas. Qualquer espetáculo que oferecemos ao público em nossa sede tem quase sempre sala lotada e público que não consegue entrar. Outra questão é olhar para o espectador como um criador. A partir do momento em que falamos que nossa matéria-prima é a relação, isso vale não somente entre os atores, mas principalmente entre cena e público. Pensar o público como criador, e não receptor, é respeitá-lo em sua potência criativa. Acredito ser esse um fator fundamental para o que chamamos de formação de público.
Fale um pouco sobre o projeto itinerante Casa Lume.
A Casa Lume é um projeto de residência teatral itinerante do Lume Teatro baseado em algumas linhas bem precisas: mostra de obras teatrais, atividades didáticas de formação, intercâmbios com artistas e grupos locais e a busca por diferentes tipos de público.
Nosso pensamento é que o Lume, em sua dualidade de grupo teatral e centro de referência na pesquisa das artes cênicas, se desloca para determinado local e, por um período de tempo, exerce suas atividades inserido em um novo contexto, afetando e sendo afetado pela comunidade local e sua realidade cultural específica. Como uma pequena tribo nômade que se desloca, a Casa Lume leva a tradição teatral do Lume Teatro a outras regiões e abre canais para que ela possa entrar em contato e intercambiar com outras tradições e modos de compreender o teatro, a arte e a vida. Assim, o Lume Teatro continua realizando sua vocação de difusor cultural e propagando um fazer/pensar teatral já consolidado, e de certa forma amplia o que já faz de maneira forte e constante em sua sede, em Barão Geraldo.
No encontro com outros grupos e artistas locais, conseguimos continuar e aprofundar uma prática já estabelecida pelo Lume durantes suas viagens, criando e solidificando espaços reais de troca de trabalho e experiências, consolidando relações de parcerias já existentes e buscando novos parceiros. Trocas estas que permitem a valorização das diferenças e a conquista de maior clareza e precisão na busca e na consolidação das identidades de todos os envolvidos no intercâmbio.
Frisamos também que temos particular interesse e preocupação com a busca de uma maior abrangência de público, inserindo nossos espetáculos em situações e espaços outros, e não apenas em teatros convencionais. Para tanto, temos a vantagem de ser um grupo que trabalha com um repertório de espetáculos no qual existe uma distinta gama de possibilidades estéticas, espaciais, temáticas etc.