por Um Por Todos - Kiko Dinucci

 

Tédio e descontentamento. Espinhas emergentes sobre o rosto com a ameaça de uma erupção obscena e repugnante. O corpo não encontra no mundo nenhum lugar que o caiba. O tédio cresce.

Em volta, a vida adulta se esvai em sucessivas desilusões. Velhos heróis, derrotados, se arrastam covardes à procura de álcool, TV, sexo, antidepressivos e fast-foods.

Os discos. Um, dois, dez, dezenas. Deitado de bruços na cama, folheia encartes, observa capas, dorme no meio do barulho.    

Dentro do corpo desproporcional e em constante mutação, mora uma criança morta. Essa criança cadáver morre como quem brinca, morre todo dia em diferentes horários.

A guitarra no canto da parede, sem cabos ou amplificador. Pega a guitarra muda e a abraça carinhosamente no colo. Um dedo aqui. Casa um. Põe o dedo na segunda bolinha. Casa três. Corda solta. Repete exaustivamente a mesma frase, em silêncio, à espera inútil de algum som.

Sempre que é forçado a sair de si, ele se sente exposto, nu, descarnado. Dói muito o vento no rosto, os olhares alheios dão paúra e os cheiros da cidade queimam suas narinas.

Volta para os discos. Por que essas guitarras gritam tão alto e a minha teima em silenciar? Comigo nada funciona direito.

No caminho para casa, no ônibus, avista um mano. Tem calça jeans rasgada e justa, tênis Le Cheval branco, camiseta preta, cabelos compridos embaixo do boné. E aí? Curte um som?

Passa a encontrar outros. Cara, tem alguma coisa errada, você usa camiseta do Sex Pistols, broche do Guns e boné do Slayer. Que diabo é você? Nem punk, nem from hell, nem poser. Você não é nada. Vira esse crucifixo, assim, de ponta cabeça, somos anticristo, moleque.

No fim de semana, consegue finalmente ligar a guitarra num amplificador. Ouvi dizer que você sabe tocar “One”, do Metallica, até o fim, mostra aí. Um baterista sem bateria bate no sofá de couro com baquetas para acompanhar. Estranho ouvir o som da guitarra assim amplificada. Descobre que não sabe tocar direito. Esse tipo de música requer muita técnica, prática mecânica e precisão, metal é coisa de eruda [sim, erudito!]. Olha, sei tocar aquela do Dead Kennedys, California Uberabas, tipo música mexicana, ó.

Punk, o negócio é punk rock, não precisa saber tocar direito, olha aqui como é que faz, põe o dedo aqui e vai, sai tocando, viu? Contra tudo e contra todos, fodam-se os boy, as paty, os hippie, os metal, os drogado, a polícia, os punk. Vamo beber suco de rapadura. Vamo pichar “fascista” em cima daquele logo da Coca-Cola da barraquinha do Seu Manolo. Vamo pintar um “X” na  vidraça do açougue do Saninho, animal liberation. Bandeira preta.

Para ir ao show é preciso passar por baixo da roleta do busão. Um ônibus, um metrô (cuidado com o urubu) e outro ônibus. Sete bandas pelo preço de uma, tem água de graça se quiser, da torneira.

Tem que ficar esperto com ganguista, manja aquele filme? Warriors? Então, é tipo aquilo lá. Olhar periférico. Testar cada caminho, surpreender o predador oculto, desmontar a tocaia, chutar a arapuca. Cuidado sempre, principalmente com nacionalistas arrombados.

Guitarra sem harpejo, direta, apenas palhetadas pléque, pléque, prenga, prenga, sobe prenga, desce prenga, pléque, pléque. Esses moleques têm alguma descarga de energia e escolhem a hora certa para soltá-la. A dinâmica se aflora a ponto de nada mais ficar estático. Os corpos se esbarram, punhos cerrados, cotovelos acertam costelas distraídas. Guerra. Dança. Um menino corre com olhos esbugalhados pelo pequeno espaço. A bateria acelera. São crianças, espermatozoides se debatendo no chão em busca de sobrevivência. Subir no palco e saltar, cair em ombros e braços alheios e ser jogado para o alto. Camisetas encharcadas. A guitarra agora com voz. Saturação. Calor. Bafo quente. Suor juvenil respingando do teto. Um lugar no mundo, longe do tédio.

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