Na janela de um apartamento de frente para o Minhocão, alguns palhaços se apresentam e chamam atenção do público que frequenta a região aos domingos, quando a via é fechada para os carros e se abre para os pedestres. Selecionado na edição 2013-2014 do programa Rumos, o Grupo Esparrama completa, em 2018, cinco anos de trabalho e diálogo com a cidade de São Paulo. Para comemorar a data, o Observatório conversou com Iarlei Rangel, produtor e diretor do coletivo, que, além de contar algumas histórias acumuladas nesses anos, pôde nos dizer quais processos moldaram a atuação do Esparrama, que enxerga no fazer artístico a responsabilidade de propor reflexões sobre a relação com a cidade.

Grupo Esparrama (imagem: René Misumi)

Como surgiu o Grupo Esparrama?

O grupo nasceu no final de 2012 e estreou em 2013. Somos quatro pessoas: eu, Rani Guerra, Ligia Campos e Kleber Brianes. Já nos conhecíamos de outros grupos, havíamos feito alguns trabalhos juntos e percebemos que tínhamos várias afinidades: de intenção de pesquisa, de forma de produção e da nossa linguagem, que é a linguagem do palhaço.

Conte um pouco sobre os espetáculos do Esparrama.

O nosso primeiro espetáculo surgiu meio que no susto. Estávamos reunidos para uma série de estudos, pesquisas, oficinas internas para nos entender melhor e recebemos o convite de uma amiga nossa, a maestrina Ester Freire, para desenvolver um projeto em que a música ocupasse papel de personagem e não fosse apenas sonoplastia. Com esse convite a gente desenvolveu o 2 por 4, espetáculo no qual um quarteto de cordas toca ao vivo e dois palhaços aparecem para tentar regê-lo – mas um quarteto de cordas não precisa de regência. A partir desse quiproquó a gente acaba falando de todas as propriedades do som. Fizemos isso com muito zelo e procurando uma maneira didática, com conteúdo e divertida.

Ainda em 2013, a gente ensaiava o 2 por 4 na sala do meu apartamento, que fica de frente para o Minhocão, e era verão, estava muito quente e precisávamos fazer intervalos. Íamos para a janela tomar um ar. E nisso juntava um monte de gente para ver o que era aquilo, dois palhaços na janela. De domingo o Minhocão é fechado, não passam carros, ele é utilizado por pedestres. A gente mora lá há 15 anos e já havia percebido que era só tocar uma música um pouco mais alta que se gerava curiosidade; dessa vez percebemos que uma ação cênica muito simples produzia interesse. Foi quando a gente se tocou de que aquilo ali dava jogo, então começamos a pensar em fazer algo utilizando esse espaço como cenografia.

Aí surgiu nosso primeiro espetáculo de janela, o Esparrama pela Janela, que deu uma projeção maior ao grupo, por causa de todo esse inusitado. Inscrevemos o projeto no Rumos com a peça em cartaz e, ganhando o edital, pudemos dar sequência à pesquisa. Foi nesse momento que entendemos a questão da arte urbana. Cada integrante tinha sua bagagem de teatro de rua, mas foi nesse momento, sendo confrontados com a cidade, que inserimos o Esparrama nesse contexto. É uma responsabilidade nossa como artista propor uma experiência em que as pessoas se relacionem com a cidade de outra maneira.

Tudo isso fez com que o grupo repensasse os próximos projetos. Daí surgiu o espetáculo Minhoca na Cabeça, desenvolvido com o apoio do Rumos, para o qual tivemos a oportunidade de trazer outros artistas a fim de trocar experiências e pensar essa relação entre arte e cidade.

Nesse período criamos outro espetáculo, voltado para salas de teatro mais tradicionais, mais convencionais. Um pouco por necessidade de respirar esse espaço e também para ocupar nossa agenda, porque o Minhocão só fecha de domingo, então precisávamos de outra peça para os dias da semana – e o 2 por 4 já tinha circulado bastante. Criamos o Fim? em 2015, quando existia toda aquela movimentação de as pessoas irem para as ruas se manifestar, tanto no Brasil quanto no mundo, e portanto a gente questionava: se o mundo acabasse, o que iria acontecer?

E existe outro espetáculo, que é a nossa menina dos olhos, porque nos colocou em outro lugar: o Navegar. O Minhoca na Cabeça termina com esta cena: uma criança descobre a rua, monta uma vela de um barco e grita “Navegar!”, como se a cidade fosse a coisa mais amorosa e mais receptiva possível. E a gente se tocou: que viagem essa! Ali, claro, há todo o contexto da história e uma potência catártica, mas as grandes cidades não são receptivas à infância. Esse foi o norte que tivemos para pensar o Navegar. E aí a gente não queria mais imaginar o que as crianças pensam sobre a cidade; o que a gente queria e fez foi um processo de ir até as crianças de São Paulo para ouvir o que elas pensam sobre as cidades e qual é esse imaginário.

Arte na Rua (imagem: Fernando Pilatos)

Como foi esse processo?

Fizemos entrevistas e conversas, depois produzimos uma exposição que circulou pelos CEUs [Centros Educacionais Unificados] e criamos a peça. Foi quando a gente sacou que não daria para ser só uma menina; passa a ser uma menina e um menino que vêm da periferia. Porque não existe um único imaginário de cidade, já que há várias infâncias.

Foram essas dificuldades que fomos tendo, de trazer diferentes olhares, diferentes experiências e também de pisar um terreno que tem sido muito discutido na educação, que é o respeito à fala da criança e a valorização dessa fala. Pensar a criança como um ator social que também faz uso da cidade.

Na circulação desse espetáculo a gente encontrou um pessoal da educação, que nos disse que o que estávamos materializando era a cidade educadora – e nem sabíamos disso. Trata-se da ideia de que existem diversos potenciais educativos na cidade, que têm de ser usados para complementar o modelo de educação mais formal em sala de aula. A compreensão de que a cidade toda é educadora, de que ensina e aprende, se as crianças puderem se utilizar dela. A educação pode ultrapassar os muros da escola. Então começamos a conversar com professores e coordenadores pedagógicos e a discutir atividades que fossem interessantes para eles e para nós. Que fizessem parte da nossa pesquisa e que fossem algo complementar à proposta das escolas. Sair de lá carregando coisas e deixando coisas também foi algo muito legal.

A ideia de cidade educadora surgiu em Barcelona. Há uma série de regras para que uma cidade possa receber essa definição. No estado de São Paulo temos dez cidades que são signatárias dessa carta. Quando circulamos por elas, fazemos articulações não só com as secretarias de Cultura, mas também com as secretarias de Educação, para realizar trabalhos de formação com professores e alunos. Não é só a apresentação do espetáculo – que, sim, é legal –, mas essa troca e os resultados que a gente consegue perceber ao longo de todo esse processo nos deixam muito felizes.

Grupo Esparrama (imagem: Sissy Eiko)

Como é dialogar com um público formado por crianças e adultos?

No Minhoca na Cabeça, por exemplo, a gente queria falar sobre especulação imobiliária, porque depois de dois anos de espetáculos na janela a gente vivia um momento de discussão muito grande sobre o Parque Minhocão. Vivemos lá há 15 anos e era uma região muito degradada – aliás, por isso fomos morar lá, porque era mais barato. A ideia da criação do parque é muito bacana, mas ajudou a criar um processo de gentrificação ligado a um discurso de valorização que chega ao ponto de chamar alguns trechos da região de Baixa Higienópolis. E a gente se incomodou bastante com isso, porque nos vimos como um agente nesse processo, fomos uns dos primeiros a utilizar o Minhocão com uma programação artística com regularidade.

A gente queria ter uma cena no Minhoca que discutisse isso. E como falar disso para uma criança, né? Gentrificação, especulação, aumento de preço são nomes e assuntos complicados. A gente começou a pensar no nosso trabalho de modo que os pequenos consigam ter uma fruição mais lúdica e, se os pais quiserem, podem complementar essa conversa em casa.

Existe diferença entre a relação com o público do teatro mais tradicional e a relação com o da janela?

Teatro de rua sempre exige um pouco mais de energia para você segurar o público, porque existem mil coisas acontecendo ao mesmo tempo e a rua é um lugar de passagem. Mas essa energia é própria do teatro de palhaço. Pensando nisso agora, uma diferença pode ser que na rua compartilhamos um espaço que é comum, que é de todos, e nos teatros de auditório talvez fique um pouco da sensação, para o público, de que aquele espaço não pertence a ele. Por isso eu gosto muito da rua.

Público (imagem: Cleber Brianez)

Vocês mencionaram alguns editais e políticas culturais. Qual é a importância dessas políticas para grupos como o Esparrama e como vocês lidam com esse assunto?

Os grupos que atuam nesta forma, a de teatro de grupo, têm se reunido, discutido bastante a situação das políticas culturais e produzido bastante material e vídeo, mas geralmente é uma abordagem mais dura, porque é um tema complexo. E o Esparrama, se você for ver a nossa página no Facebook – que é o maior canal de diálogo que temos com o público –, vai observar que é um público muito diverso: tem a pessoa que acompanha a cena cultural e a que está lá porque gostou de um espetáculo e não domina o linguajar mais técnico de produção e de políticas culturais. Então a gente propôs fazer uma série de vídeos, Esparramando a Questão [disponível aqui], que tratam do tema de maneira mais leve e próxima à nossa produção – utilizando os bonecos, a comédia, e explicando o que é a lei de fomento, o que é desmanche, o que é “um projeto, um voto” [questão relacionada à Lei de Fomento ao Teatro], o que são todas essas questões de forma mais didática.

De maneira geral, nós, como cidadãos, não acompanhamos as políticas públicas como deveríamos – não que não exista essa preocupação, mas muitas vezes não conseguimos mesmo acompanhar tudo o que acontece, seja na saúde, na educação, na mobilidade etc. Agora, no nosso caso, a cultura a gente acompanha porque é nossa área de atuação. Então é despertar para esse lugar e esse papel também nosso de facilitar a compreensão das pessoas sobre o tema. E não é um favor isso que nós estamos fazendo; é quase uma obrigação de informar o cidadão. Se uma política pública como o fomento – que é pensada para a cidade, com um propósito de formação de público e de continuidade, que tem uma penetração e uma capilaridade incríveis em São Paulo –, se uma política assim é cancelada, não é o Esparrama que deixa de ganhar, é a sociedade que perde, porque essa é uma verba revertida para a sociedade.

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