Por Leticia de Castro
Um tesouro escondido debaixo da terra, no topo de um morro povoado por espíritos de piratas e suas vítimas. Um país onde as pessoas se locomovem por meio de cambalhotas. Um rio que gosta de música e é habitado por sereias tóxicas. Histórias como essas, colhidas e criadas nas margens do Rio Jucu, no Espírito Santo, fazem parte do projeto Nave-gar, selecionado na edição 2015-2016 do programa Rumos Itaú Cultural.
Principal rio do Espírito Santo – responsável, entre outras coisas, pela geração de energia elétrica, pela irrigação de lavouras e pelo abastecimento de água do estado –, o Jucu tem sofrido com a poluição e as práticas agrícolas insustentáveis. Fundadora da organização cultural Quintal Mobile e moradora de Barra do Jucu, em Vila Velha, por dez anos, a comunicadora Fabíola Mecal sempre teve uma forte ligação afetiva com a região e acompanha de perto o processo de declínio do rio.
Sensibilizada com essa mudança na paisagem e nos recursos naturais, Fabíola decidiu investigar a relação da população com as águas do rio e acompanhar como as transformações no meio ambiente alteravam também a cultura da região. Em 2012, acompanhada por 15 artistas brasileiros e colombianos, ela viajou pelos seis municípios capixabas banhados pelo Jucu, com uma proposta de nomadismo artístico.
“Percorremos toda a bacia hidrográfica entrevistando moradores para levantar histórias e causos da região e entender como era a relação deles com a água, com o rio”, diz Fabíola. Foi nessas andanças que surgiram as histórias da sereia tóxica, do tesouro escondido no morro, do rio que gosta de música. Convertidas em vídeos, animações, desenhos, poemas, performances, registros sonoros e fotográficos, as narrativas foram disponibilizadas no site Cartografia Afetiva do Rio Jucu.
“Uma coisa ficou muito clara nesse processo: as pessoas que moravam na zona rural, os pequenos agricultores, tinham uma forte relação com o rio, conheciam seu trajeto, sua história e as mudanças que vinha sofrendo. Mas o que mais nos chocou foi a ignorância das pessoas dos centros urbanos. Elas não sabiam por onde passava o curso da água que abastece a casa delas, não sabiam a situação da poluição, absolutamente nada”, conta Fabíola.
Com 166 quilômetros de extensão – passando pelos municípios de Domingos Martins, Marechal Floriano, Viana, Cariacica, Guarapari e Vila Velha até desaguar no Oceano Atlântico –, o Jucu é responsável pelo abastecimento de água de cerca de 70% da região metropolitana de Vitória. Sua importância para o estado é histórica: foi a partir dele que se realizaram as primeiras investigações do sertão capixaba e o desbravamento de cidades como Vila Velha, Cariacica e Viana. Atualmente, vive seus momentos de mais baixa vazão, provocada pela estiagem, pela ocupação e pelas práticas agrícolas irregulares. No ano passado, o rio perdeu por 15 vezes sua ligação com o mar. Some-se a isso o lançamento de grande volume de esgoto sanitário ao longo de seu curso, e o resultado é a alta taxa de mortandade da fauna aquática.
Nave
Concluída a cartografia afetiva, que incluiu também experiências de ecopedagogia com a apresentação do trabalho em espaços educativos, o projeto ganhou novos objetivos. Agora, era necessário extrapolar os limites da web e consolidar o trabalho em uma estrutura física e palpável, que pudesse ampliar ainda mais o alcance das ideias. Mas de que forma conciliar a natureza nômade e híbrida da iniciativa com a materialidade desejada?
Esse desafio deu origem a Nave-gar, desdobramento do projeto de cartografia afetiva iniciado em 2012. Contemplada pelo programa Rumos Itaú Cultural e liderada por Fabíola e os artistas Nadeje Lucas e João Felipe Herrero, a nova proposta consiste na criação de um dispositivo móvel de cultura livre, um livro-objeto (ou simplesmente “nave”) e uma plataforma digital, uma comunidade on-line para juntar artistas, ativistas e educadores envolvidos com a questão da água. “Queremos reunir as pessoas que se articulam em torno desse tema para que troquem ideias e experiências e colaborem nos projetos das cidades vizinhas”, diz Fabíola.
A “nave” criada pelo grupo é feita em papelão e bambu e carrega toda a trajetória do projeto ao longo do Rio Jucu. Dividida em vários compartimentos, tem jogos, caleidoscópios, mapas, diário de bordo e banco de sementes crioulas, além de um pen drive com materiais audiovisuais. O objetivo é que seja usada como um recurso para atividades de ecopedagogia e para a disseminação do conteúdo produzido nos últimos anos.
Em maio de 2017, o trio realizou seis oficinas para artistas, educadores e ambientalistas, uma em cada cidade da bacia hidrográfica, sobre o funcionamento da “nave”. No total, foram produzidas 20 peças, depois distribuídas entre os participantes das oficinas para que fossem usadas em atividades educativas com a população em geral.
Para a última semana de junho, está prevista a atividade de conclusão do projeto: uma grande mostra em Vitória, reunindo todos os participantes, com exposição de todo o trabalho gerado ao longo de anos de observação e vivência no Rio Jucu. “Nosso objetivo principal é fortalecer uma rede de cuidados com o rio”, diz a idealizadora do projeto.