Com injustiças transformadas em tabus através do tempo e da falta de memória, o Brasil sofre de uma espécie de letargia que impede a autocrítica e a reparação. No estado do Ceará não é diferente: as secas que castigam a população nordestina deixam rastros traumáticos na história do país. Segundo dados da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), entre 1877 e 1984, 3,5 milhões de pessoas – a maioria delas crianças – morreram nessa região por fome ou doenças derivadas da desnutrição. Nesse processo, desde pelo menos o ano de 1915, criaram-se campos de concentração onde os famintos da seca eram isolados sob a vigilância de soldados e onde milhares morreram sem chance de recomeçar, aprisionados pelo Estado.
Esses episódios, apagados forçosamente da memória nacional ao longo do tempo, fazem com que o Ceará fique em dívida permanente com sua própria identidade. Com a maioria das ruínas destruídas e das vias férreas desativadas, o que permanece é o espectro do flagelo através da miséria que ainda assola a região.
Tais incidentes são trazidos à tona no documentário Dos Campos à Concentração, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016. Idealizado por David Aguiar e Sabina Colares, ambos formados pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o filme propõe reconstituir os fatos e trilhar uma reconstrução identitária da sociedade através do cotidiano, pois é nele que se reproduzem no presente as políticas do passado.
Com o acompanhamento da professora doutora Kênia Souza Rios – do Departamento de História da UFC, autora do livro Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e Poder na Seca de 1932 – e do pesquisador Venâncio Oliveira, o documentário fincará suas bases em um importante material de arquivo e será rodado em 2017, com lançamento em 2018.
A princesa do norte
Para contar essa história é preciso evocar a capital cearense do começo do século XX – a promissora “loira desposada do sol”, batizada assim no poema “A Fortaleza”, de Francisco Paula Ney. Cerca de um século depois de ter se tornado liderança da capitania (1799) e de ter assumido a exportação do algodão, grande riqueza do estado, com uma concentração fundiária alarmante – as terras da capitania pertenciam a 1% da população livre –, Fortaleza idealizava viver a belle époque tupiniquim. Isto é, a euforia advinda da revolução científico-tecnológica importada da Europa pelas elites, que exigiam uma cidade modernizada e limpa.
Com a grande seca de 1877-1879, uma leva de 100 mil famintos, o triplo da população, se instalou nos subúrbios da cidade, despertando pânico nessa elite asséptica, que agora teria de lidar com pedintes, imundos e doentes nas ruas de Fortaleza. Uma coisa era certa: aqueles retirantes tinham de ser apartados. E assim se deram as novas medidas para conter a invasão que assombrava a ilusão de urbanismo e civilidade importada de Paris na seca que se seguiu. O escritor Rodolfo Teófilo descreveu o primeiro campo em A Seca de 1915: “Um quadrilátero de 500 metros onde estavam encurralados cerca de 7 mil retirantes”.
Conhecido como Campo do Alagadiço, hoje Otávio Bonfim, a oeste da capital cearense, o projeto piloto de curral humano, onde os famintos eram vigiados por soldados, foi desativado em dezembro daquele ano, após o governo haver estimulado a migração em massa para a Amazônia – estima-se que 30 mil retirantes tenham sido mandados à região em 1915, ano em que, segundo o historiador Marco Antônio Villa, autor de Vida e Morte no Sertão, pelo menos 100 mil teriam morrido de fome.
É importante ressaltar a luta travada durante anos entre os pedidos de socorro diante da seca e dos processos de isolamento dos flagelados desde 1877-1879 e a indiferença do governo federal comandada pela “política do café com leite”. Como no caso em que o então presidente da República, Venceslau Brás, gastou uma fortuna para a valorização do café em um momento de crise dos barões dos cafezais, praticamente deixando à míngua os flagelados da seca de 1915.
Dizia o jornal A Lucta (Sobral/CE) de 1o de setembro daquele ano: “Quanto mais se acentua a crise em nossos sertões e quanto mais alto se alevanta a grita dos famintos a clamar por socorro, a União fechando criminosamente os olhos a este horror indescritível, pretende mandar fazer larga emissão para valorização do café paulista, como se aquelle produto tenha mais valor do que a vida de milhares de homens, que o governo pretende imolar ao amor que tem às sacas de café da terra dos Andradas”.
A edição de 22 de fevereiro de 1916 do jornal A Noite (Rio de Janeiro/RJ) registrava: “[...] estão morrendo por dia centenas de pessoas às margens das estradas de ferro e no alto sertão. Os famintos comem gatos, cães e tudo que encontram. Os trabalhos do governo não amparam quasi ninguém, são exíguos demais os socorros do governo federal. Bradae a favor de um povo que morre a fome e traja molambos”.
Indústria da seca
Havia duas classes que lucravam com a seca: políticos, que recebiam verbas com a chamada indústria da seca, advindas do poder federal e que, desviadas, acabavam se revertendo em benefício das próprias elites; e donos de terras, que aproveitavam para comprar as terras e o gado magro dos pobres flagelados.
O caos instaurado na capital que anos depois viria a ganhar os títulos de quinta cidade mais desigual e de 12a cidade mais violenta no mundo – e a mais violenta no Brasil – fez com que a pobreza fosse criminalizada por meio do Dia da Extinção da Mendicância, em 17 de fevereiro de 1923. O jornal O Nordeste anunciava que ser mendigo era, a partir de então, contra a lei. Entretanto, o grande programa de isolamento, exploração e apartheid social seria concebido nove anos mais tarde, em 1932, quando ocorreu uma das secas mais trágicas do Ceará.
A história se repetiu, e milhares tentaram chegar a Fortaleza, que àquela altura vivenciava, através dos princípios da civilidade, um intenso processo de urbanização, com prédios modernos, novos bulevares, ruas alinhadas e avidez pelo crescimento da indústria do turismo. A pressão da elite e da imprensa da época, que criavam a imagem de um retirante perigoso, capaz de saquear e cometer atrocidades na cidade, fez com que, sob a chefia do interventor Carneiro de Mendonça, fossem criados sete campos de concentração, semelhantes aos campos nazistas, nas cidades de Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, São Mateus, Crato e Fortaleza (onde havia dois).
O documentário
De acordo com David Aguiar, a elite forjou um discurso altruísta que visava mandar os retirantes para locais adequados, esses campos de concentração. “A elite se utilizava de um argumento altruísta e de caridade. E nesses locais adequados as pessoas eram aprisionadas, tinham a cabeça raspada, eram colocadas em roupas feitas de sacos de feijão e eram numeradas. Havia então essa metodologia de discipliná-los, sobretudo”, explica.
A partir de então, foi instaurado o trabalho escravo nos campos. “Existe uma matéria publicada num jornal de 1932 que indaga: se a sociedade cuidava com tanto carinho daquelas pessoas, por que elas não poderiam retribuir trabalhando na construção da cidade?”, conta David. “No entanto, elas estavam mal alimentadas, doentes e frágeis. Remanescentes narram que, quando chegava carne aos campos, ela era imediatamente dada aos guardas e aos administradores; restos como sangue, nervos e ossos eram jogados aos cativos.”
A indústria da seca fez com que a verba destinada a ajudar a população retirante fosse desviada e investida no turismo, com a construção de portos e estradas, utilizando-se mão de obra escrava. Centenas de mulheres, homens, crianças e velhos morriam todos os dias nos campos de concentração, por inanição, excesso de trabalho e violência.
“Pirambu foi um campo de concentração e hoje é um dos bairros de periferia com a maior densidade demográfica de Fortaleza, formado por migrantes sobreviventes. Boa parte da periferia foi erigida sobre valas comuns e grandes cemitérios advindos desses campos de concentração”, explica o diretor.
Sabina Colares conta que esse assunto nunca é lembrado em Fortaleza nem no Ceará e que a motivação da dupla é recontar essa história para gerar uma compreensão social do presente. “Ninguém fala sobre o assunto hoje em dia, e nas aulas de história não aprendemos com clareza o que realmente aconteceu”, diz ela. “Precisamos desenterrar esses fatos para contar a história da nossa cidade, gerar debate para entender políticas de exclusão que ainda permanecem e o que as motiva. Olhar para o migrante, a seca e os bairros periféricos e descortinar o hoje.”
Em fase de pesquisa e feitura do roteiro, os diretores estão em contato com alguns remanescentes e personagens desde 2014, quando partiram para Senador Pompeu a fim de acompanhar e registrar a Caminhada dos Devotos das Almas, que reúne mais de 5 mil devotos de todo o sertão central e região dos Inhamuns. Tais devotos cultuam a alma dos mortos do campo de concentração da Barragem do Patu, verdadeiros mártires que ainda se encontram encarcerados nas redondezas dessa barragem e escutam pedidos e lamentações dos vivos para conceder milagres.
Proibidos de falar sobre o assunto ao longo dos anos, os parentes das vítimas do extermínio se apoiaram na religiosidade, sofrendo com o descaso e a pobreza e identificando-se com seus ancestrais. Os peregrinos percorrem estradas de pedra e terra, passam pelos casarões da concentração, cantam e oferecem água e pão às almas. Nesse contexto, os diretores puderam constatar que tal culto serve de encontro entre as antigas e as novas desgraças, reverberando nesse imaginário coletivo os gestos simbólicos de sua identidade: as almas da barragem são as únicas que escutam e que são capazes de entender os sofrimentos e os traumas do presente.
Dos Campos à Concentração carrega em seu nome essa duplicidade refletida pelos antigos crimes cometidos no sertão e por sua persistência no tempo através dos flagelos do presente – a ancestralidade marcada pelas diásporas traumáticas que se desdobram na continuidade dessa história. Assim, a estratégia fílmica elaborada pelos realizadores consiste em integrar passado e presente, documentário e ficção por meio de um personagem não ator que persegue sua própria história.
“Trata-se de um filme híbrido, na linha do cineasta português Pedro Costa de integrar o que é real e o que é ficção, com um personagem não ator que transita pelo filme como se fizesse uma costura entre o ontem e o hoje, servindo de guia para o espectador ao percorrer, num road-movie, as cidades que abrigavam os campos, descortinando o passado e interagindo com familiares e remanescentes das vítimas”, elabora Sabina.