Por Duanne Ribeiro

Recuperar o passado para revigorar a luta presente é objetivo de Negritos: Imprensa Negra no Recife e em Salvador. Coordenado pela professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Martha Rosa F. Queiroz e realizado com apoio do Rumos 2015-2016, o projeto pretende digitalizar jornais alternativos publicados nas capitais de Pernambuco e da Bahia. “A imprensa negra”, afirma Martha, “é um caleidoscópio que nos permite ver a movimentação negra por diferentes ângulos”. Cultura e religião, estratégias políticas, a multiplicidade dos grupos: tudo isso aparece nas páginas desses periódicos de forma vigorosa.

Ainda segundo a docente, recuperar esses jornais “contribui para fortalecer a perspectiva de que o Brasil é um país de muitas vozes e que os sujeitos subalternizados constroem formas de enfrentar o silenciamento. Encontramos nesses jornais uma comunidade negra organizada, intelectualizada, diversa internamente e pronta – como agora e sempre – para construir respostas aos seus dilemas e desafios. Isso tudo reforça a luta travada em nossos dias”.

Negritude, jornal criado pelo Movimento Negro Unificado de Pernambuco, é uma das publicações recuperadas pelo projeto
Negritude, jornal criado pelo Movimento Negro Unificado de Pernambuco, é uma das publicações recuperadas pelo projeto

 

Martha se interessou por essa ideia porque ela própria participou da produção de alguns dos jornais agora sendo digitalizados. Quando graduanda em história pela Universidade Federal de Pernambuco, ela foi parte da comissão editorial dos periódicos Negritude e NegrAção, além de escrever para o Omnira. Mais tarde, para a pesquisa da sua tese de doutorado – defendida na Universidade de Brasília, “Onde Cultura É Política. Movimento Negro, Afoxés e Maracatus no Carnaval do Recife (1979-1995)” –, utilizou esse tipo de material. “Ao confirmar o potencial dos jornais como fonte significativa”, explica a pesquisadora, “consolidei a intenção de digitalizá-los e disponibilizá-los para pesquisadores e outras pessoas interessadas”.

Além dos jornais citados [Negritude, do Movimento Negro Unificado de Pernambuco (MNU-PE); NegrAção, do Afoxé Alafin Oyó; e Omnira, do Grupo de Mulheres do MNU-PE, todos esses do Recife], o projeto abrange Djumbay, da Djumbay – Organização pelo Desenvolvimento da Comunidade Negra; Angola, do Centro de Cultura Afro-Brasileira – também recifenses –; e Nêgo, do Movimento Negro Unificado da Bahia (MNU-BA). O período coberto por essas publicações vai desde a década de 1980 até os primeiros anos do século XXI.

Detalhe do periódico Nêgo, desenvolvido pelo Movimento Negro Unificado da Bahia
Detalhe do jornal Nêgo, desenvolvido pelo Movimento Negro Unificado da Bahia

“Estamos no momento de coleta de jornais e digitalização daqueles já localizados”, diz Martha. Nesse processo, foram contatadas e entrevistadas pessoas envolvidas com os periódicos, seja na redação, seja na circulação ou na recepção. “Nosso propósito é identificar os jornais que ainda faltam. A dificuldade está em localizá-los, uma vez que são pouco encontrados em instituições como museus, arquivos e bibliotecas: precisamos buscá-los nos acervos pessoais. Contudo, as pessoas nem sempre têm seu material organizado e à mão. Leva-se tempo não só para localizar os guardiões da memória, como para que encontrem em suas casas o que necessitamos.”

“Guardiões da memória” é um termo recorrente nas pesquisas em história voltadas à memória e se refere a indivíduos ou grupos que salvaguardam acervos sem um respaldo institucional ou oficial. Martha conta que, com o avanço e a divulgação de Negritos, guardiões “escondidos em cidades do interior” procuram o projeto para doar publicações. “Exemplo disso foi a doação de 159 edições do jornal Abibiman, da cidade de Arcoverde, no sertão de Pernambucano. Já o conhecíamos; a felicidade foi ter acesso ao acervo e constatar a confiança da guardiã.”

O escopo de Negritos, vê-se, começa a ser alargado para outras localidades além das capitais. Martha anuncia que estão “prospectando um projeto para cobrir a imprensa negra em cidades do Nordeste além de Recife e Salvador”. Quanto mais vozes o projeto puder abarcar, maior será o aprendizado potencial – é o que podemos concluir pelas palavras da docente. Nos jornais antigos, diz ela, aprende-se a ter “respeito aos mais velhos”, como acontece com outras instituições negras. E “aqueles que vieram antes precisam ser escutados com atenção”.

Isso vale para os ativistas e para os jornalistas atuais. Quanto aos primeiros, Martha aponta: “O ativismo de hoje pode aprender com o de ontem. Em especial, essa relação passado e presente pode ajudar a compreender que as mutações do racismo apenas travestem a roupagem de um velho conhecido”. Em relação aos segundos, “talvez a maior lição que a imprensa intitulada alternativa possa ofertar ao jornalismo esteja no impulso à formação de profissionais que enxerguem as possibilidades comunicacionais ligadas aos diferentes segmentos da sociedade, como os negros, as mulheres, os indígenas, a comunidade LGBT, a população carcerária”.

Ainda mais, para a coordenadora de Negritos, “os jornais alternativos não apenas apresentam pautas relativas a esses grupos, mas questionam a forma estereotipada – no mínimo – com que são representados pelos meios de comunicação de massa. Eles propõem outros canais e possibilidades de leitura de mundo”.

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