obra: Memória João das Neves – 50 Anos de Teatro Brasileiro
selecionado: João das Neves
No final da década de 1950, com seus 20 e poucos anos, João das Neves fazia teatro em Campo Grande, no subúrbio do Rio de Janeiro, e ia de trem até o bairro. Percorreu o trajeto por cerca de dois anos e nesse período conviveu com muitos personagens, acontecimentos trágicos e outros inusitados. Foi a partir dessa experiência que o dramaturgo se inspirou para escrever a peça O Último Carro, um dos principais símbolos do teatro de resistência dos anos 1960 e 1970. “É uma metáfora do Brasil da época, um trem desgovernado”, frisa.
E se existisse a possibilidade de rever esse espetáculo? Isso está bem próximo de acontecer. Em sua casa em Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), João guarda uma raridade: um vídeo 16 mm com a gravação da apresentação da montagem na 14ª Bienal Internacional de São Paulo. O material poderá ser recuperado e levado ao público a partir do projeto Memória João das Neves – 50 Anos de Teatro Brasileiro, selecionado pelo Rumos.
No armário em que guarda a preciosidade, há muitas outras, que também serão organizadas e colocadas à disposição em um site.
Em 80 anos de vida e 50 de carreira, o diretor e dramaturgo acumulou um acervo importante da história do teatro nacional. Os números impressionam. São 1,1 mil fotografias em papel, 800 fitas cassetes, 80 fitas VHS, 24 horas de filme 16 mm, 20 fitas u-matic, 18 horas de fitas de rolo (áudio), 10 horas de MDS (áudio), 4 mil negativos, 1.850 recortes de jornal e textos datilografados e 80 páginas inteiras de jornal.
João das Neves começou a carreira profissional no Opinião. Antes, integrou o grupo amador Duendes, que se transferiu para Campo Grande (MS). Já nessa época, desenvolvia um trabalho político. A peça A Última Estiagem chamou atenção do governo de Carlos Lacerda, que expulsou o grupo do Teatro Artur Azevedo.
Foi nesse momento que João se aproximou do Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), onde passou a trabalhar com teatro de rua. O golpe militar de 1964, porém, fechou o centro. Como forma de protesto, João e outros egressos do CPC idealizaram o musical Opinião, que reuniu sob a direção de Augusto Boal Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão. A apresentação marcou o nascimento do grupo que leva o mesmo nome e que contou, além de João das Neves, com Oduvaldo Vianna Filho (o Vianninha), Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira Gullar, entre outros.
O Grupo Opinião se manteve até 1983. Em quase duas décadas de atividade, realizou trabalhos significativos, como Liberdade, Liberdade, Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, A Saída? Onde Fica a Saída? e Mural Mulher, além de O Último Carro. A peça – lembra João – ficou anos proibida pela censura. “Foi liberada em 1976 com alguns cortes, mas nós a levamos ao público na íntegra”, salienta. Para driblar os censores, que assistiam sempre ao último ensaio dos espetáculos, os atores improvisaram uma espécie de parede, como se fosse parte da obra, e impediram que os funcionários do governo vissem as cenas que deveriam ter sido eliminadas.
O dramaturgo foi o único dos fundadores que permaneceu até o fim da companhia e, por isso, ficou com o acervo do grupo. “Temos muita coisa, como também uma fita em áudio do musical Opinião. Tentei guardar da melhor forma possível, mas precisamos ver se conseguiremos recuperar essa fita e a de O Último Carro”, pondera.
No material que preserva em casa, destaca-se também o trabalho realizado por João no Acre, a partir do fim dos anos 1980. Com atores amadores, ele formou em Rio Branco o grupo Poronga, que realizou a peça Tributo a Chico Mendes, em homenagem ao líder seringueiro assassinado por fazendeiros.
Há algum tempo João se estabeleceu em Minas Gerais. Lá montou, entre outras peças, Primeiras Estórias, baseada no livro de mesmo nome de Guimarães Rosa. Ao lado da companheira, a cantora Titane, o diretor preserva a memória do teatro nacional, mas continua na ativa, produzindo trabalhos.