Espaço de possibilidades - o trabalho das Fábricas de Cultura
16/04/2018 - 16:31
Inauguradas no começo da última década, as Fábricas de Cultura têm sido uma ferramenta significativa de fortalecimento da produção de cultura local e de ampliação do repertório de alguns bairros da periferia paulistana. A metrópole conta com um total de dez unidades, sendo cinco na zona leste (Vila Curuçá, Sapopemba, Itaim Paulista, Parque Belém e Cidade Tiradentes), administradas pela organização social Catavento, e outras cinco nas zonas norte e sul (Brasilândia, Capão Redondo, Jaçanã, Jardim São Luís e Vila Nova Cachoeirinha), dirigidas pela organização social Poiesis.
Os bairros que abrigam as Fábricas foram escolhidos a partir de uma pesquisa realizada pela Fundação Seade, que mapeou as áreas da cidade de São Paulo com os índices de vulnerabilidade juvenil mais severos: mortes violentas, gravidez na adolescência, perfil de renda das famílias e nível de escolaridade, entre outros. Bairros com números alarmantes foram os primeiros alvos do programa, ativo até hoje.
Interessado em conhecer mais sobre o projeto, o Observatório Itaú Cultural conversou com Kluk Magri Neto, superintendente do programa por parte da organização social Poiesis, responsável pelas Fábricas de Cultura das zonas norte e sul.
Kluk Magri Neto é graduado em economia (Unicamp), com especialização em gestão e políticas culturais (Itaú Cultural/Universidade de Girona) e MBA em gestão empresarial e em gestão de empreendedorismo social (FIA). Foi gerente de planejamento e programação do Instituto Abril antes de ingressar na organização social Poiesis para administrar as Fábricas de Cultura.
Comente um pouco sobre sua trajetória profissional e de como migrou de um setor de negócios para o universo da cultura.
Eu me formei em economia e fui trabalhar no setor privado. Ingressei no Grupo Abril, onde fiquei por 13 anos. Dentro dessa equipe, passei por diversas áreas: gerente de planejamento da unidade de negócio de revista; gerente na área de educação, quando o grupo comprou editoras de livros e sistemas de ensino; e atuei no universo da publicidade. Porém, sempre quis me ocupar com a área cultural, sendo também músico compositor. Além das minhas criações musicais eu já tinha me aventurado a fazer alguns projetos usando as lei de incentivo de forma independente e me interessava pelo meio
Quando o Grupo Abril investiu na criação da Praça Victor Civita, parceria público-privada com a Prefeitura de São Paulo para recuperar um espaço degradado onde funcionou uma antiga usina de incineração de lixo no bairro de Pinheiros, eu me engajei nesse projeto e fiz uma transição profissional de uma carreira na área de negócios para a de gestão cultural e social dentro Grupo Abril. Então me tornei gerente de planejamento e programação do Instituto Abril e fui responsável por toda a captação de recursos com patrocinadores para revitalizar o espaço onde hoje está a Praça Victor Civita da Prefeitura. Depois da construção da praça, assumi também a responsabilidade pela programação do espaço, fazendo muitas parcerias com organizações sociais de cultura, produtores independentes e instituições culturais para criar uma programação totalmente financiada por esses parceiros, já que o Grupo Abril mantinha o espaço, mas não financiava a programação. A partir daí, ingressei nesse mundo e fui conhecendo as pessoas do meio cultural, como os gestores e os diretores das principais instituições da cidade de São Paulo. Nesse período, me envolvi, na Secretaria de Cultura, com as discussões sobre leis de incentivo à cultura no Brasil e fui convidado para fazer parte da Comissão de Avaliação das Organizações Sociais de Cultura - órgão colegiado que assessora o secretário de cultura do estado na gestão do sistema das organizações sociais.
Depois de deixar o Instituto Abril, atuei por um ano como gerente executivo da Escola São Paulo, que oferecia cursos livres na área de arte, e então ingressei na organização social Poiesis, que na época firmava contrato com a Secretaria de Estado da Cultura para administrar o programa Fábricas de Cultura. Desde 2012, estou nesse programa, onde atualmente ocupo as atribuições de superintendente, responsável pela gestão de cinco unidades do programa: duas na zona sul da capital (Capão Redondo e Jardim São Luís) e três na zona norte (Brasilândia, Jaçanã e Vila Nova Cachoeirinha).
As Fábricas de Cultura constituem um programa amplo com dez equipamentos culturais localizados nas periferias da cidade que atuam nas áreas de formação, difusão cultural e incentivo à leitura. Sobretudo é um projeto que atua com arte e cultura, mas com objetivos sociais de desenvolvimento bem definidos. Temos, por exemplo, um programa de “cursos”, para usar uma linguagem mais usual, formado pelos Ateliês de Criação e Trilhas de Produção com um leque amplo de linguagens artísticas (teatro, música, dança, artes visuais, literatura, capoeira e multimeios). Essas atividades são abrigadas em cerca de 20 salas de aula, que integram o conjunto da estrutura física dos edifícios em cada Fábrica de Cultura. Além disso, atuamos na área de difusão, com uma programação intensa, realizada nos teatros das unidades (equipados com cerca de 300 assentos), em outros espaços ao ar livre e nas bibliotecas que, além do serviço de empréstimo de livros, possuem uma programação cultural intensa e diversa, com contadores de histórias, encontros com autores e atividades lúdicas que trabalham com outras linguagens artísticas para incentivar o hábito da leitura. Em 2015 inauguramos um amplo programa de atendimento à produção musical, especialmente dos artistas locais, com cinco estúdios de gravação muito bem equipados e projetados, um em cada Fábrica de Cultura que gerenciamos. As atividades dos estúdios não existiam inicialmente no Programa, mas influenciamos a direção da política pública da Secretaria de Cultura que acolheu a iniciativa. Agora, as cinco Fábricas que gerenciamos realizam gravações como um serviço gratuito para os artistas da região e possibilitamos muitas experimentações com os próprios aprendizes que frequentam as Fábricas
Toda a estrutura predial, de equipamentos e pessoal das Fábricas de Cultura, também está disponível para a comunidade de outras formas. Inúmeros grupos artísticos, dos mais profissionalizados aos mais amadores e iniciantes, utilizam gratuitamente os equipamentos, as salas de aula e outros espaços para seus ensaios, suas produções artísticas. Essa atividade de fomento, abrindo as portas para os artistas e coletivos, que chamamos de cessão de espaço ou agendamentos de uso, depois acaba se desdobrando em mais benefícios para as comunidades do entorno, pois grande parte desta produção quando amadurece passa em seguida a integrar a programação cultural gratuita oferecida na Fábrica. As cessões de espaço ao mesmo tempo incentivam a produção e abrem as portas para a difusão do trabalho artístico.
Qual foi a importância de sua experiência no mercado de negócios para seu trabalho atual com gestão de projetos culturais?
Toda experiência na área de administração no setor privado foi muito valiosa para o desenvolvimento de certas competências totalmente desejáveis no campo da gestão cultural. A expressão “gestão” já traz consigo todo um universo que evoluiu bastante no campo da administração, puxado pelas necessidades das empresas. E o setor cultural e social, cada vez mais profissionalizados, bebem dessa fonte. No caso dos projetos culturais, toda a experiência com mercado publicitário e gestão de patrocínios também dão uma base importante, porque hoje os gestores culturais precisam entender como as empresas fazem seu planejamento, pensam suas marcas, direcionam seu patrocínio. Se não houver o entendimento dessa linguagem, torna-se difícil circular nesse meio e conseguir dialogar com os recursos.
Por isso, toda essa bagagem fez bastante diferença, as habilidades e competências desenvolvidas numa fase profissional anterior foram muito bem aproveitadas quando eu entrei no universo da gestão de programas e projetos culturais e sociais.
E quais foram as diferenças de atuação que você percebeu?
No Instituto Abril eu era responsável pela área estratégica de sustentação do programa, tanto pela captação de recursos quanto pela programação cultural da Praça Victor Civita nos seus primeiros três anos de atuação. Apesar de existirem os recursos do Grupo Abril para a manutenção do espaço, a programação cultural que eu botei de pé naquela época foi inteiramente montada com recursos de terceiros. Seja das organizações sociais de cultura, com quem fiz parceria, com o apoio do Sesc (Pinheiros), por meio de patrocínio a projetos de produtores culturais independentes, ou patrocínio de outras empresas a projetos do próprio Instituto Abril, como os cursos de fotografia com fotógrafos renomados da National Geographic, que renderam depois duas exposições; ou ainda o projeto de melhoria do espaço com a construção da cobertura da Arena em frente ao palco, fulcro dos eventos que compuseram a programação. O Grupo Abril estava empenhado em prover os recursos para manutenção do espaço. Por isso, a articulação que fiz com diversos outros agentes culturais foi o que garantiu a vida e o conteúdo da programação cultural e esportiva naquele período.
Já nas Fábricas de Cultura, o meu papel é bem distinto. Quase a totalidade dos recursos provém de repasses da Secretaria de Cultura regulados por um contrato de gestão. Então a instituição administra recursos do Estado para realizar a programação de atividades
Resumindo, no Grupo Abril atuei como um planejador, um arrecadador e um articulador para montar uma programação numa área central da cidade (Pinheiros), em parceria com outras instituições e empresas. E nas Fábricas de Cultura atuo como um gestor do programa e dos recursos associados a ele, que tem características e metas estabelecidas pela política pública definida pela Secretaria de Cultura do Estado em parceria com a organização social em que trabalho.
Como você avalia o panorama atual do mercado cultural no que diz respeito a sustentabilidade econômica dos programas?
Trabalho atualmente em uma organização social que administra equipamentos culturais e programas de cultura da Secretaria de Cultura do Estado e sabemos o quanto a sustentação dos mesmos está alicerçada na garantia do fluxo de recursos para a sua manutenção. Esse é o primeiro ponto importante: garantir os recursos. Seja para os programas administrados por OSs, seja para as entidades e estruturas da administração direta do estado ou ainda os recursos dos fundos e programas de fomento, assim como para as verbas de renúncia fiscal.
Esse primeiro ponto está ligado à um outro, que o precede, que é a capacidade do setor cultural se articular de forma unida e estruturada para fazer do fluxo de financiamento para a arte e a cultura uma realidade efetivamente valorizada pela sociedade e pelos governos.
Eu acompanhei o desenvolvimento histórico da Lei Rouanet, que se constituiu como o principal instrumento de incentivo à cultura no Brasil, e da criação de diversas leis de incentivo estaduais e municipais que se inspiraram nesse modelo. Presenciei o crescimento do setor na década de 1990 e, nos anos 2000, entrei nas discussões sobre legislação do incentivo fiscal justamente em momentos em que a Lei Rouanet era amplamente criticada por gestores no Ministério da Cultura (MinC) e por uma parte do setor cultural com base nas conhecidas dinâmicas de concentrações em regiões geográficas e grandes proponentes.
Como economista, o diagnóstico que eu fazia na ocasião e ainda hoje é o seguinte: o setor cultural fragmentado não se entendia como um setor econômico. Por um lado, havia grupos que, alinhados à uma corrente de muita crítica, em campanha contra tudo, propunha basicamente a estatização da distribuição dos recursos para as atividades culturais em substituição ao modelo híbrido da Lei Rouanet, que encarna esse papel no Fundo Nacional da Cultura, mas também abre às empresas a possibilidade de participar do financiamento pelo patrocínio incentivado. Do outro, produtores, instituições e outros artistas com entendimento diverso sobre a realidade do mecanismo de incentivo. Esse grupo se integrava no mercado e estava prosperando dentro desse universo. Alguns grupos abominavam a integração das empresas com o patrocínio da arte. Diante dessa discussão, percebi de um lado muita desinformação misturada a questões de princípio ideológico e do outro, possibilidades de resolver muitos dos problemas atribuídos à legislação com ações de gestão do próprio MinC. Voltamos para o ponto anterior. O setor cultural não se entendia e ainda não se vê como um setor econômico, que pode se unir para lutar pelos seus interesses junto ao Estado, como fazem outros setores econômicos e seus agentes em outras cadeias produtivas da sociedade. Isso ainda é um pouco estranho para alguns personagens do meio artístico.
Com as discussões sobre economia da cultura e economia criativa que chegaram ao Brasil, o quadro mudou um pouco. Mas ainda assim não há consenso e união, com isso o setor cultural perde força. Alguns segmentos mais organizados e que se enxergam como cadeias produtivas se saem melhor em conseguir o seu espaço. Setores ligados ao entretenimento ou à indústria cultural fazem parte desse grupo que se organiza melhor economicamente. O audiovisual é o exemplo forte, onde os benefícios do fomento são os mais bem estruturados e com maior poder de alavancagem de recursos.
A legislação federal de incentivo à cultura que temos hoje, assim como outras subnacionais que nela se inspiraram, apresenta, ao menos em seu arcabouço normativo, as possibilidades de equilíbrio entre as fontes de recursos para o fomento. De um lado, para pegar a matriz federal temos o Fundo Nacional da Cultura, totalmente estatal e sujeito às decisões discricionárias do MinC; do outro, o mecanismo do incentivo fiscal, do mecenato. Antes de creditar todos os problemas das desigualdades e distorções à legislação, somente por causa da dinâmica do patrocínio no mecenato, é preciso fortalecer o Fundo Nacional da Cultura, pois a falta de atuação na desconcentração regional então passa a ser vista como um problema de gestão e orçamento e não legislativo. Com o MinC realmente fortalecido em seu orçamento, o Fundo Nacional da Cultura poderia contrabalançar os desequilíbrios que existem e persistem no mecenato.
Eu vejo mais ou menos dessa forma. Como os mecanismos de incentivo fiscal estaduais e municipais foram muito inspirados no arcabouço da Lei Rouanet, podemos encontrar nos estados e nos municípios problemas semelhantes, pois a lei federal moldou o padrão da legislação de incentivo nas esferas federativas subnacionais.
Como se dá o intercâmbio entre as Fábricas de Cultura e suas populações de entorno? Em que medida podemos enxergá-las como unidades específicas?
A interação com a comunidade no dia a dia nos dá uma referência daquilo que está sendo demandado, que faz parte da característica específica mencionada. Na zona sul (mas não só nela), por exemplo, a presença do rap é muito forte; na zona norte há tradições do samba, da música nordestina e do rock. E tudo isso vai chegando como demanda. Existe ainda um quadro de territorialidade, que é quem está próximo fisicamente, seja por ser oriundo da região ou por simplesmente querer estar lá, com quem nos relacionamos. A partir da percepção do que já está ali, podemos valorizar a produção local. Proporcionamos espaço para expressão, estrutura para produção, programas de formação e oferecemos a possibilidade dessa produção caminhar no circuito que as próprias Fábricas de Cultura, como rede espalhada pela cidade, podem se constituir. Se temos, por exemplo, um grupo emergindo na zona sul, podemos ajudá-lo a circular em outras regiões da cidade.
Por outro lado, existe uma via no outro sentido, alinhada às diretrizes de ampliação do repertório cultural da juventude, que é também objetivo do programa. Por isso levamos para os bairros atendidos programações que nunca estariam na periferia, se não existissem as Fábricas de Cultura, incluindo possível artistas internacionais, gêneros musicais menos privilegiados nas regiões, enfim, vivências que usualmente não estariam na periferia, mas em instituições localizadas em regiões centrais.
Por tudo isso, posso dizer que a gestão é uma mistura entre o que o programa propõe e aquilo que a comunidade demanda. Nós dançamos conforme o que está rolando na comunidade, mas também antenado naquilo que não está e que é legal levar para misturar.
Em 2015, a inauguração de estúdios musicais nas Fábricas de Cultura foi um evento com grande repercussão no cenário cultural paulistano. Quais foram os reflexos dessa atividade, que não estava prevista no programa inicialmente?
Em fevereiro de 2015, inauguramos, de uma só vez, cinco estúdios, um em cada Fábrica de Cultura que administramos. Instantaneamente, foi revelada uma demanda reprimida por esse tipo de serviço: nos primeiros dois meses de inscrição, o calendário de utilização do ambiente foi preenchido até o fim do ano. Essa realidade, é claro, acomodou-se um pouco, contudo a alta procura continua até hoje.
Nesses estúdios, recebemos grupos de diversos níveis, desde aprendizes das Fábricas, que aprenderam a tocar no próprio espaço e depois formaram uma banda, para fazer suas primeiras gravações, até quem já está mais desenvolvido musicalmente e que, apesar desse progresso, encontra dificuldades de estrutura e vê a possibilidade de fazer, na Fábrica, a sua produção.
Além disso, as atividades realizadas nos estúdios se integram com outras programações das Fábricas de Cultura, como falei: grupos que vão gravar lá acabam depois entrando na programação cultural dos espaços, fazendo parte da programação. Eles encontram estrutura para gravar, palco e divulgação.
Nesse processo sentimos a necessidade de ir além. Não só dar o suporte para a gravação, mas construir uma ponte com o mercado musical. Dessa forma, fizemos parcerias a fim de que parte do material gravado fosse para as lojas digitais e para os ambientes de streaming (Spotify, Deezer, Apple Music). Além disso, os estúdios encabeçam uma série de discussões sobre mercado musical, desenvolvendo programações com conteúdo sobre produção de áudio e dinâmicas de mercado para quem precisa ou tem o desejo de se aprofundar na área. Buscamos isso porque muitas vezes a dificuldade maior não é ter o disco gravado, mas conhecer como funcionam as dinâmicas para projetar o trabalho e entrar no mercado musical.