Entrevista: políticas culturais e as tecnologias de informação e comunicação
29/03/2018 - 15:32
Professor de ciências da informação e documentação na Universidade de São Paulo (USP), Marco Antônio de Almeida falou com o Observatório Itaú Cultural sobre o uso das novas tecnologias no campo das políticas culturais. Doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e líder do Grupo de Estudos de Práticas Culturais e Tecnologias de Informação e Comunicação (Practic), o professor aborda, na entrevista, questões como os desafios ligados à formação de agentes culturais no Brasil e os impactos das redes sociais no consumo da cultura.
O que são as tecnologias de informação e comunicação (TICs)? Como você avalia sua incorporação às políticas culturais nacionais nos últimos anos?
De modo geral, quando se fala em TICs a imagem que imediatamente surge é a de computadores de uso pessoal conectados em rede. Como já observava Norbert Wiener, o pai da cibernética, esses aparatos possuem duas características: são máquinas capazes de processar grande quantidade de informações e também aparelhos que possibilitam a comunicação entre as pessoas. Nesse sentido, têm características dos meios de comunicação anteriores e outras próprias. Assim, as políticas culturais que levam em consideração as TICs atuam no duplo sentido de possibilitar às pessoas o acesso tanto às produções simbólicas preexistentes – o patrimônio cultural – quanto aos novos canais e formas de produção e de expressão cultural. Se o aspecto de acesso tem sido uma constante mais frequente dessas políticas, o aspecto da expressão cultural – antes reservada aos atores especializados, os artistas, e agora estendida potencialmente ao público como um todo – parece-me ser o traço de inovação introduzido pelo recurso às TICs.
Com o uso das novas tecnologias, as políticas culturais estão impactando de alguma forma a relação dos indivíduos com a produção e a construção da identidade e da memória cultural?
A ideia de impacto cultural já foi criticada há muito tempo por alguns autores – como Lévy, Postman e Miège – que a consideravam uma metáfora inadequada do tipo de relação social que se estabelece com as tecnologias. Assim, parece-me que o ponto aqui é considerar as TICs como artefatos culturais e procurar entender sua inserção na vida cotidiana, a maneira pela qual elas se enraízam socialmente e são apropriadas pelos sujeitos. Pode-se dizer que, de modo geral, as TICs reconfiguram a relação das pessoas com a memória e o conhecimento. Nessa perspectiva, são mais um desdobramento, mais um capítulo, da história das tecnologias do conhecimento, como a escrita, o livro, a imprensa. Elas possibilitam uma expansão da memória pessoal, incorporando uma quantidade enorme de registros e informações de que podemos nos valer. Isso é particularmente perceptível no caso dos telefones celulares, que reproduzem a capacidade dos computadores pessoais em rede, agregando-lhes a portabilidade e, portanto, uma infinidade de usos cotidianos independentemente do lugar em que se esteja: são, simultaneamente, agenda telefônica, álbum de fotografias, diário pessoal, mapa interativo, plataforma de entretenimento (que permite acesso a músicas, filmes, jogos) etc.
Teoricamente, essas possibilidades abertas pelas TICs deveriam potencializar a preservação, a produção e a disseminação da memória cultural. Por outro lado, essas potencialidades se inserem num espaço social perpassado por diferenças enormes, que determinam capitais econômicos, sociais e culturais – na perspectiva de Bourdieu – muito distintos. Isso sem considerar, ainda, os interesses corporativos das indústrias culturais/de comunicação, bem como os ordenamentos políticos e jurídicos que incidem sobre os fluxos informacionais. Assim, não é possível fazer uma pura e simples apologia nem uma condenação apocalíptica e definitiva das TICs: sua presença, mesmo que problemática, enriquece e disponibiliza novos meios e recursos para a criação cultural e para a dinamização das relações sociais. O que acontece é que o grau de autonomia e as condições socioculturais dadas para a apropriação e os usos das tecnologias variam contextualmente, particularmente num país como o Brasil. Desse modo, discutir o papel desempenhado pelas TICs implica repensar, caso a caso, as modalidades de comunicação e de mediação presentes nas ações e nas políticas culturais.
Você afirma que as TICs mudam de forma rápida e profunda a maneira como nos comunicamos com outras pessoas e nos relacionamos com os diversos fluxos informacionais locais e globais. É possível pensarmos essas tecnologias como propagadoras de novas linguagens, capazes de promover diálogos geracionais?
Não existe uma resposta simples para essa questão. Isso decorre, em grande parte, das características complexas do mundo atual, globalizado, no qual os processos conjugados de expansão econômico-cultural e de disseminação de redes telemáticas reconfiguraram o papel dos Estados-nação e modificaram os cenários sociais de todo o globo, onde explodem as diferenças. Um dos paradoxos desse processo é que, embora as TICs possuam presença e arquitetura globais, elas convivem com apropriações locais condicionadas às diferenças culturais, políticas, sociais e econômicas. As concepções de cultura popular, cultura tradicional, cultura dominante e cultura massiva adquirem sotaques próprios de acordo com os diferentes contextos, e as apropriações sociais das TICs refletem essa multiplicidade e essa ambiguidade. Podem ocorrer manifestações culturais híbridas, que vão da tentativa de reprodução o mais próximo possível do original, com apenas a tradução para o idioma local, até apropriações mais livres ou transgressivas, incorporando traços culturais distintos. Nessa circulação acelerada de formas e processos culturais, as apropriações e as hibridizações envolvem tanto conteúdos como formatos.
Os jovens são particularmente abertos e sensíveis a essas possibilidades, e a indústria cultural investe nisso, criando ícones e mitologias que possuem distribuição global e a pretensão de ser “universais” (sobre isso, vale reler os trabalhos de Renato Ortiz). Assim, comunidades de fãs de Harry Potter ou de Star Wars são encontradas em diversas partes do mundo, trocando impressões em sites, realizando convenções, produzindo fanfiction escrita e/ou audiovisual a respeito dessas produções hollywoodianas. Uma contrapartida desse fenômeno é a ampliação do grau de dificuldade para a veiculação de conteúdos com menor visibilidade, embora isso não seja impossível. Poderia citar o caso das HQs no Brasil, que demonstra um forte consumo de produções norte-americanas, particularmente no nicho de super-heróis, mas que também possui o contraponto nacional, seja no mercado de larga escala (caso das produções de Mauricio de Souza), seja no mercado “independente” ou “alternativo”, com editoras especializadas ou com produções coletivamente financiadas. As TICs e as redes sociais desempenham um papel importante na sustentação/disseminação dessa produção de nicho, e também no estabelecimento do diálogo entre gerações etárias distintas de fãs e consumidores das HQs.
No que tange à relação com os conteúdos culturais tradicionais, existem experiências que apontam o potencial das TICs para estabelecer um diálogo intergeracional – por exemplo, a filmagem de mestres do maracatu, da capoeira, da ciranda e sua disseminação pela internet, funcionando como referencial para jovens que organizam ou integram grupos culturais dessas expressões artísticas. O mesmo vale para intervenções de arte com caráter mais vanguardista e disruptivo – Néstor García Canclini, em seus escritos mais recentes, nos dá exemplos instigantes, principalmente na Cidade do México. Em São Paulo, diversos coletivos compostos de jovens artistas têm proposto intervenções urbanas conectadas ao uso das TICs.
Como potencializar o papel da mediação no campo das políticas culturais? Quais são os principais desafios dos gestores culturais para pensar a mediação levando em conta a relação entre o Estado, a sociedade civil e as novas tecnologias?
Como já observamos anteriormente, embora a ideia de disseminação dos fluxos culturais conectada ao uso cada vez mais intensivo das TICs seja pertinente como descrição de um processo cultural global, características e condições decorrentes das especificidades locais influenciam essa dinâmica. A diversidade de conteúdos e formatos disponíveis nas redes infocomunicacionais, somada às facilidades proporcionadas pelo formato digital para sua manipulação e sua reconfiguração, permite a hibridização e a recriação cultural por parte de indivíduos e grupos, gerando distintas possibilidades de apropriação cultural. Por outro lado, se é possível perceber a ampliação da circulação de conteúdos diversificados, culturalmente enraizados, criando circuitos paralelos ou culturas de nicho, a indústria cultural luta persistentemente para manter a sua hegemonia – como mostram as observações de Frédéric Martel, essa constatação é particularmente verdadeira para alguns campos, como o das indústrias do audiovisual e dos videogames.
Desse modo, acredito que o papel do Estado, principalmente no Brasil e em outros países latino-americanos, não seria o de se “intrometer” demais nesses processos culturais, no sentido de um dirigismo estatal, mas o de ter uma ação positiva para facilitar que aquelas expressões culturais que não possuem o “valor de mercado” consigam se viabilizar e se tornar visíveis. Ou seja, proporcionar que elas tenham chances semelhantes ou compartilhem um mesmo horizonte de possibilidades. Trata-se de um desafio múltiplo, que envolve conciliar os impulsos locais, nacionais e globais, fomentando a produção, a qualidade, a distribuição, a circulação e a apropriação dessas expressões locais.
Nesse domínio da diversidade, os processos colaborativos de mediação cultural e da informação seriam ainda mais importantes no sentido de estabelecer estratégias para viabilizar, facilitar e/ou proporcionar o acesso a essas produções. Os desafios residem, principalmente, em dois aspectos. O primeiro seria criar estruturas de parceria/incentivo que não ficassem reféns dos interesses exclusivos do mercado ou que não abdicassem do controle qualitativo por parte do Estado (os descaminhos da Lei Rouanet podem ilustrar esse ponto). O segundo aspecto envolve uma questão ainda mais complexa, que é a da formação – em diversos níveis – dos atores envolvidos nesse processo, no Estado, nas organizações, nas comunidades. A questão das mediações sociais nos contextos formativos das políticas e das ações culturais mereceria maior reflexão, que não cabe aqui. Trata-se do desafio de incorporar uma cultura pedagógica apoiada em formas de experiência que não se restringem à mediação escrita, ligadas a modos de negociação entre conteúdos e significados que foram, muitas vezes, estigmatizados, discriminados e deslegitimados.
Você conhece espaços/equipamentos (bibliotecas, museus, centros culturais etc.) que estejam utilizando novas tecnologias com foco na formação de públicos?
Uma experiência que eu destacaria, pelo seu caráter formativo, é a do Medialab-Prado, em Madri, na Espanha. Trata-se de um “laboratório cidadão” de produção, investigação e difusão de projetos culturais que explora as formas de experimentação e aprendizagem colaborativa que surgiram com as redes digitais. Ele oferece sustentação a uma comunidade ativa de usuários/interatores por meio do desenvolvimento de projetos colaborativos, além de oferecer distintas maneiras de participação que permitem a colaboração de pessoas com diversos perfis (científico, artístico, técnico), níveis de especialização (principiantes e experientes) e graus de implicação com as propostas. O espírito que anima essa iniciativa é o de colocar em contato pessoas com pessoas, pessoas com projetos, e projetos com projetos. As atividades, em sua maioria, são registradas e retransmitidas em vídeo, e posteriormente podem ser consultadas e descarregadas pela web.
Outro exemplo é o dos Parques Bibliotecas de Medellín, na Colômbia, que despertam uma reflexão sobre a conexão das políticas culturais com outras políticas setoriais, bem como com a busca de integração da cultura e dos conhecimentos locais com as formas consagradas de conhecimento cultural. O uso das TICs busca facilitar trocas e proporcionar o diálogo entre os diversos atores e saberes envolvidos e os demais programas sociais, em especial os de educação. Vale destacar, em relação ao desenvolvimento urbano, que os Parques Bibliotecas vêm desempenhando um importante papel na recuperação do tecido urbano e no fortalecimento do capital social. As unidades são geoestrategicamente localizadas, sendo a elas outorgado um papel detonador de processos de desenvolvimento de territórios com altas densidades populacionais caracterizados por condições de habitação precárias, déficits de equipamentos públicos e zonas de risco socioambiental.
No Brasil, o cenário no momento não é dos mais animadores. Tentativas de reproduzir a proposta dos Parques Bibliotecas aqui não prosperaram – no Rio de Janeiro eles foram fechados; em São Paulo, além do número reduzido, cumprem um papel mais convencional se comparados com seus congêneres colombianos. Outro exemplo, a política dos Pontos de Cultura, menina dos olhos do MinC entre 2003 e 2010, acabou sendo minada pelo próprio governo: na gestão da ministra Ana de Hollanda (2011/2012), além dos cortes nos repasses financeiros, o que se pôde observar foi uma descontinuidade em relação às políticas anteriores de integração e inclusão cultural por meio da internet e das tecnologias digitais, compreendendo a discussão de direitos autorais, a livre circulação de material cultural pelas redes e a formação e capacitação de agentes culturais via Telecentros e Pontões Culturais. Uma das poucas exceções nesse cenário são as unidades do Sesc/SP, que possuem iniciativas voltadas para a cultura hacker e para a apropriação cultural das TICs, especialmente pelos jovens – o que ainda é pouco para cobrir a ausência do Estado, em seus diversos níveis.
Há alguma metodologia ou ferramenta que busque entender os impactos das redes sociais no consumo cultural?
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) vem desenvolvendo um trabalho consistente e bastante abrangente nos últimos anos em relação à construção de indicadores culturais, e o acesso/uso das TICs recebeu um destaque importante. Recentemente o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) lançou um estudo qualitativo-quantitativo das práticas culturais da população e do uso das tecnologias de informação e comunicação. No que diz respeito às ferramentas, hoje se encontram disponíveis on-line e gratuitamente alguns softwares de geoprocessamento que possibilitam mapeamentos culturais de diversas naturezas – instrumentos estratégicos para a compreensão das demandas culturais e para o planejamento de ações e políticas culturais tanto do Estado quanto de instituições e grupos da sociedade civil. Instituições culturais e universidades têm constituído grupos e observatórios das políticas e práticas culturais, mas esse conhecimento ainda está em um estágio bastante fragmentado. Com o volume de dados que vem sendo produzido, é de esperar que os próximos anos nos brindem com algumas sínteses e sistematizações mais consistentes acerca do “estado da arte” nessa temática.
Isaura Botelho, em entrevista ao Observatório Itaú Cultural, destaca a importância da participação das pessoas nas práticas e na construção das políticas culturais. Pensando nisso, como as instituições de cultura e o Estado podem usar as novas tecnologias para estimular a formação do repertório cultural das pessoas?
Essa é uma questão recorrente, sob certos aspectos, na discussão da formação dos públicos da arte – a importância da visitação, da frequentação de espaços culturais como elemento formador de gostos e repertórios. No Brasil, esse processo ficou restrito, grosso modo, às elites culturais. Isaura aponta, acertadamente, que, quando se fala em público de cultura no nosso país, isso ocorre em duas chaves: para lamentar sua ausência ou para “formá-lo” em relação ao que é pensado culturalmente como legítimo. Acredito que as TICs podem ter uma dupla inflexão nesse processo: de um lado, ampliando o repertório cultural dos públicos; de outro, fazendo circular outras informações, outras produções culturais, que descentralizem ou coloquem em xeque o que é considerado “legítimo” do ponto de vista cultural.
Nesse sentido, a emergência e a proliferação de manifestações e coletivos culturais atuam a contrapelo dessa perspectiva que privilegia o acesso à fruição, ao consumo cultural, mas que não contempla as possibilidades de produção e expressão por parte do “público”. A meu ver, estimular essa práxis cultural é incidir diretamente na formação de repertórios culturais mais amplos e críticos, mas para isso também é necessário formar os sujeitos para um uso mais qualificado das próprias TICs, que explore em maior profundidade seus potenciais. Essa formação em relação ao uso da tecnologia – subentendida sob várias nuances em conceitos como os de competência informacional, letramento informacional, literacia digital e infoeducação – vem despertando a reflexão de diversas áreas acadêmicas.
Entre 2003 e 2010, o Ministério da Cultura (MinC) integrou as tecnologias digitais às políticas culturais. A iniciativa procurava potencializar a rede formada pelos Pontos de Cultura, estimulando o uso de softwares livres, e foram disponibilizados kits multimídia, computadores e outros equipamentos. Uma das críticas recebidas por essa ação diz respeito à ausência de políticas de capacitação dos agentes culturais. Seria possível pensar essa capacitação levando em conta a dimensão territorial do Brasil?
No caso dos Pontos de Cultura, sua realidade era muito diversa, justamente porque a lógica do Programa Cultura Viva operava com base no apoio a associações socioculturais que já desempenhavam um papel na sociedade mais ampla ou em comunidades locais e específicas. Ao atuar com base nessa lógica, a heterogeneidade é algo que necessariamente se faz presente. Existia, portanto, nos Pontos de Cultura uma diferença crucial em sua capacidade de operação e agenciamento, ligada a um conjunto de fatores estruturais e às capacidades de articulação dos atores envolvidos. As novas práticas relacionadas ao digital complementavam e agregavam maior complexidade às atividades artísticas já existentes, relacionadas à dança, ao teatro, à capoeira, ao maracatu, à congada, ao artesanato e a tantas outras práticas. A inserção das TICs abria, para além das práticas culturais conhecidas, uma oferta muito heterogênea de atividades e de contato com novas formas de conhecimento e informação. Porém, junto com as potencialidades desse modelo de política cultural proposto pelo MinC, também ocorreram obstáculos e desafios, como superar as dificuldades técnicas inerentes às TICs e à sua implementação e apropriação, além dos trâmites burocráticos e das dificuldades no acesso a recursos financeiros e na prestação de contas. Do ponto de vista da formação tecnológica e de gestão dos agentes culturais, o investimento nos Pontões (associações que tinham o perfil de articuladores e formadores de rede e atuação mais macro, em um conjunto determinado de Pontos de Cultura, que poderia ser organizado por temática ou por região) revelou-se insuficiente.
Assim, lidar com a heterogeneidade dos grupos, a partir da articulação das entidades culturais no “micro” ou no “médio” espaço público constituído pela rede formada por um Pontão, envolvia um processo de aprendizagem do diálogo e da administração de controvérsias que implicava conflitos, constituição de acordos, avanços e recuos que, por sua vez, caracterizam um processo desenvolvido num período de tempo que nem sempre atende às expectativas ou à própria dinâmica dos atores envolvidos. Isso pressupõe investimento contínuo e uma articulação bem amarrada entre a formação a distância e a formação presencial. Uma articulação entre o MinC, universidades públicas, institutos e escolas técnicas federais poderia dar ganho de escala numa política de formação de recursos de âmbito nacional, além de propiciar a necessidade identidade local, mas, se isso não ocorreu nem quando as condições políticas eram favoráveis a um projeto dessa natureza, o que dizer agora?
Como podemos pensar a construção de TICs cada vez mais transversais e que envolvam diversos campos, como os da cultura, da educação e da economia?
Dificilmente podemos responder a essa questão sem incorrer num velho chavão, o da interdisciplinaridade – que, entretanto, é muito mais anunciada do que praticada. Dois exemplos podem esclarecer melhor esse ponto, um positivo e outro negativo. O positivo é o já mencionado caso dos Parques Bibliotecas de Medellín: em sua maioria, são compostos de profissionais de distintas formações, que se articulam em torno dos objetivos e dos desafios propostos pela instituição. Não há uma “reserva de mercado” natural para cada função/atividade nem elas são estanques ou acomodadas em nichos próprios, que não se misturam. O exemplo negativo é a maneira pela qual se dá, no Brasil, o debate acerca da lei que determina a obrigatoriedade de bibliotecas escolares em todas as instituições de ensino: as discussões quase sempre se estabelecem a partir de perspectivas corporativas ou setoriais, sem contemplar, de fato, um olhar interdisciplinar e um projeto de formação educacional-cultural de longo prazo e sintonizado com os desafios do futuro. Discutem-se as bibliotecas escolares em si, quem deveria trabalhar ou não nelas, como deveria ser o acervo etc., quando elas deveriam estar sendo discutidas em conjunto com as salas de informática, concebidas como um único espaço de construção do conhecimento, como universos complementares e não antagônicos. Desse modo, perdem tanto a cultura literária como a cultura tecnológica, e a oportunidade de estabelecer uma sinergia criativa e crítica para a formação de crianças e jovens é desperdiçada.
Outro aspecto que me parece interessante em relação a essa questão tem a ver com a abertura para as novas experiências e repertórios sinalizados pelas produções dos artistas e dos coletivos artísticos periféricos, seja das grandes cidades, seja dos rincões do Brasil, aos quais as TICs ajudam, em alguma medida, a dar visibilidade. Lembram-me o que diz Canclini em seu livro A Sociedade sem Relato: que os artistas são hoje pesquisadores e pensadores que, em suas produções, desafiam os consensos sobre as ordens sociais, as formas de comunicação e sociabilidade. Nesse sentido, subvertem também o próprio uso das TICs e nos dão pistas e insights para repensar suas apropriações pelas políticas e ações culturais.