Entrevista com Eliane Brum
11/02/2015 - 19:21
Preocupada com questões ambientais e interessada na cultura de periferia, a jornalista Eliane Brum fala sobre o desconhecimento dos vários 'Brasis' do Brasil, da importância de reconhecer e valorizar povos indígenas e do impacto das construções hidroelétricas sobre esses povos, entre outras questões. Eliane também é escritora e documentarista. Publica frequentemente em seu site desacontecimentos.com e no twitter @brumelianebrum.
Observatório: Desde 2006, o Ministério da Cultura (MinC) promove o Prêmio Culturas Indígenas, que se propõe a desburocratizar e promover o acesso dos indígenas às políticas públicas. Em sua quarta edição, que tem o nome de Raoni Metuktire (líder do povo mebengocre, conhecido internacionalmente por sua luta pelos direitos dos povos indígenas e pela preservação da Amazônia), contemplou cem projetos, voltados para a manutenção da identidade e para o fortalecimento das culturas tradicionais indígenas, com um investimento total de 1,6 milhão de reais. Você acredita que esse tipo de premiação ajuda na valorização e na circulação da cultura indígena?
Eliane Brum: Eu não conheço esse prêmio do Ministério da Cultura em profundidade, assim não tenho condições de fazer uma avaliação sobre o impacto do prêmio e a qualidade dos projetos que ele tem contemplado. Dito isso, me parece que existir um prêmio como esse num país com mais de 230 povos indígenas é importante, a priori, ainda que obviamente não seja suficiente.
Como sabemos, o Brasil desconhece os Brasis, e esse desconhecimento, no caso dos povos indígenas, tem se revelado criminoso. Não existe “o” indígena, mas esses mais de 230 povos diversos entre si, cada um com sua visão de mundo e sua forma de se ver no mundo, com um enorme conhecimento sobre o meio ambiente, com uma variedade linguística fascinante. A ignorância dos não índios, que afeta a maioria da população e lamentavelmente também o atual governo, tem permitido que sejam cometidos etnocídios, como o que ocorre neste exato momento com povos da bacia do Xingu, devido à construção da hidrelétrica de Belo Monte, e genocídios, como no caso dos guarani-caiová, em Mato Grosso do Sul, que sofrem há décadas com o suicídio dos jovens por absoluta corrosão de seu modo de vida. Isso para ficar apenas em dois exemplos.
No momento em que a mudança climática se tornou o maior desafio possivelmente de toda a história humana, deveríamos ter pelo menos a inteligência de perceber que precisamos aprender com os povos indígenas, assim como com as comunidades ribeirinhas. Ou seja: se não fosse pelas razões óbvias, humanitárias e de direitos desses povos, deveríamos conhecer e respeitar os povos indígenas pelo menos para tentar impedir que este planeta se torne hostil. Se ainda existe floresta em pé no Brasil, é por causa desses povos e dessas comunidades, que vivem neste momento um dos piores períodos históricos no que se refere a seus direitos, desde a redemocratização do país. Mas, em vez disso, continuamos alimentando o senso comum com a imagem perversa de um índio genérico, apresentado como “entrave ao desenvolvimento” e cujo único desejo supostamente seria se integrar e viver alegremente nas periferias urbanas, transformado em pobre.
Digo isso porque buscar conhecer, compreender e alcançar a enorme diversidade cultural dos povos indígenas não é uma bondade nossa, dos não índios, ou uma curiosidade, mas uma urgência. Assim, qualquer prêmio ou programa que tenha por objetivo fazer a cultura dos povos indígenas circular é necessário, se for bem executado. Mas é pouco, muito pouco.
Abordando ainda a questão indígena, queria saber sua opinião sobre a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que prevê que o conteúdo programático escolar aborde diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil na formação da sociedade nacional, resgatando suas contribuições nas áreas social, econômica e política. Em sua percepção, você acredita que essas ações podem contribuir para a conscientização e a preservação da cultura indígena pela sociedade?
Acho que qualquer iniciativa que busque reconhecer o outro como alguém que tem algo a dizer sobre si – e também sobre nós – é importante. Assim como qualquer iniciativa que mostre que aquele que é diferente também tem o direito de existir como diferente, como outra experiência de ser e de estar no mundo – e não sendo pressionado a ser um igual. Nesse sentido, reconhecer que há outras vozes na história e que elas contam de contradições e de conflitos amplia a complexidade, o que é fundamental, e torna possível chegar mais perto das verdades todas.
Não há uma cultura indígena, mas mais de 230 povos vivendo e construindo uma experiência, como já foi dito. E havia mais de mil quando os europeus chegaram ao Brasil. Essas culturas indígenas não são estanques, fixadas e imutáveis, mas estão em movimento. Não é algo para estudar como um bicho empalhado, mas para compreender como algo em movimento, dialogando com todo o resto. O desafio hoje é que possamos enxergar isso, na escola e fora dela, porque somos extremamente ignorantes em relação aos povos indígenas, como já disse anteriormente e não custa repetir. A ponto de termos uma ministra, caso de Kátia Abreu, afirmando no jornal de maior circulação do país barbaridades como a de que os conflitos se dão porque “os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção”.
Para conhecer os povos indígenas, é preciso primeiro compreender que precisamos conhecê-los. Como uma experiência em curso, e não como um passado. A urgência deste momento histórico – ou uma das várias urgências – é que a maioria desses povos está ameaçada. Não é admissível que genocídios e etnocídios de povos inteiros estejam sendo perpetrados em pleno século XXI pela ação de poucos e pela omissão da maioria.
Em uma entrevista, você afirmou que costuma lançar seus livros nas periferias, em saraus, e ainda contou que a periferia está cada vez mais criando um mercado novo para as próprias demandas culturais. Isso se dá graças ao acesso à internet, em que as pessoas deixam de ser apenas espectadores e passam a ser atores e consumidores desse mercado. Qual é sua opinião sobre esse tipo de produção em desenvolvimento e seu impacto social nessas comunidades?
Acompanhei o movimento literário das periferias, marcado por saraus como o da Cooperifa e por muitas outras iniciativas, na primeira década do século XXI. Esse movimento, por sua vez, nasceu em parte por causa do hip-hop das décadas anteriores, tendo como ícone os Racionais MC’s. Falo de São Paulo, que é onde acompanhei mais de perto. Naquele momento, se rejeitavam nesses espaços o mercado, as grifes, o “sistema”, como parte da afirmação de identidade. Os historicamente rejeitados agora rejeitavam, os historicamente “fora” inverteram os sentidos e se colocaram dentro, a periferia como um território próprio delimitado em seus próprios termos, positivando o que antes era negativo. Marcas próprias eram criadas, afirmando esse orgulho não de estar, mas de “ser” periferia, a periferia agora deslocada para o centro simbólico. Acho que isso foi muito forte na primeira década do século XXI e ainda hoje tem potência. Mas, nesta segunda década, entraram em cena outros atores e outras visões de mundo. Não é possível falar das periferias hoje, também como território simbólico e de imaginários, sem levar em conta fenômenos como o funk ostentação e também os rolezinhos, ocupação que marcou a virada de 2013 para 2014. Esses fenômenos trazem outras complexidades ao reivindicar exatamente o mercado, as grifes, o luxo, o consumo, o shopping. E não há como entendê-los sem compreender a entrada em cena do que tem sido chamado de “classe C” ou “nova classe média” e o enorme impacto da ampliação do acesso à internet.
Em relação à cultura da periferia, nos anos 1990 era comum observar que os atores só se legitimavam quando o centro o reconhecesse, e essa legitimação, de certo modo, era atribuída à grande mídia. Um exemplo interessante é o prêmio da MTV dado aos Racionais MC’s pelo videoclipe Diário de um Detento em 1998, na categoria Escolha da Audiência. A partir desse momento, houve uma grande expansão do rap e hoje ele está em grandes canais de TV, capa de portais, trilhas sonoras de novelas e em outros locais onde antes não transitava. Em relação aos artistas da periferia, você acha que essa lógica de legitimação por meio do centro ou da grande mídia persiste até hoje ou isso está mudando? Quais seriam essas mudanças?
Não sou uma estudiosa do tema, mas me parece que os Racionais MC’s e outros grupos de rap se legitimaram nas próprias periferias, onde viviam e das quais falavam, e se legitimaram também por recusar o centro como fator de legitimação. Os Racionais, especificamente, eram fenômeno de venda sem estarem em nenhuma grande gravadora e se recusando a aparecer em programas de TV como os da Globo e a dar entrevistas para a grande imprensa. Isso estamos falando dos anos 1980, 1990 e início dos 2000. Hoje, o hip-hop está num momento diferente. Acho que o mesmo se passou mais recentemente com o funk ostentação, com conteúdo e significados completamente diversos, mas que se tornou um fenômeno antes mesmo de ser visto pelo centro, ao falar dos anseios de uma nova geração das periferias. Nesse caso, foi fundamental a potência da internet como espaço para divulgar seus videoclipes.