O Encanto de Narciso e o fascínio pelas imagens
31/08/2020 - 10:00
Por Cassiano Viana
“Só a farta colheita na seara da compreensão pode dar frutos tão sintéticos como os capítulos deste livro”, escreve a professora Cremilda Medina, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), na apresentação de O Encanto de Narciso, livro de Boris Kossoy, fotógrafo, teórico e historiador da fotografia, livre-docente e professor titular da ECA-USP.
Lançado neste mês, o livro complementa, segundo o autor, a trilogia teórica formada por Fotografia & História (1988), na quinta edição, Realidades e Ficções na Trama Fotográfica (1999), na sexta edição, e Os Tempos da Fotografia, o Efêmero e o Perpétuo (2007), na terceira edição, todos publicados pela Ateliê Editorial. Todos foram traduzidos e publicados
em diversos países, como Alemanha, França, Espanha, Argentina e Estados Unidos.
Escritos entre 2010 e 2018, os quase cem breves ensaios – 97, para ser preciso – de
O Encanto de Narciso estão divididos em seis partes que percorrem diferentes vertentes, sendo elas: o sistema e a essência; produção e recepção; a desmontagem do constructo; fotografia e memória; história da fotografia; e outras dimensões da fotografia.
“De repente me dei conta que o mito de Narciso, encantado com a sua própria imagem refletida na água, seja talvez a primeira manifestação ou indicação de alguma reflexão sobre a imagem”, conta Kossoy em entrevista exclusiva para o Itaú Cultural (IC), lembrando que Narciso sucumbiu adorando seu reflexo na água. “Eu me encantei com o mito de Narciso”, brinca.
Para o professor, insistir em uma leitura da imagem ou linguagem da imagem, ou, ainda, em uma linguagem fotográfica, é um desvio, um equívoco conceitual. Ao contrário do que diz o ditado popular, uma imagem não vale mais que mil palavras se o receptor nada sabe a respeito do objeto fotografado em si ou de seu entorno. A fotografia é uma (re)apresentação ilusória.
“O mundo das imagens fotográficas caminha paralelo ao mundo real, na dimensão da representação. É o mundo da segunda realidade. É a dimensão do ilusório e do simbólico, do vazio e do perpétuo, e da memória”, diz o autor.
Outro conceito introduzido no livro é o do instante eterno, perpétuo, que só pode ser concebido no espaço da imagem fotográfica: um retângulo eterno. “O fato passado, interrompido no seu fluir pelo registro fotográfico, segue hibernando, congelado contra a marcha do tempo: um instante eterno”, ensina Kossoy. “No entanto, o tempo fotográfico só tem sentido no espaço fotográfico, o eterno retângulo. Me refiro a um tempo estagnado, onde os ponteiros do relógio não se movem, onde a vida transcorre sempre igual, sempre no mesmo instante, no mesmo lugar.”
Ele nos apresenta ainda uma comparação com as selfies de hoje: “As imagens produzidas pelos autoadoradores do presente não prometem vida longa, desaparecerão com a mesma facilidade com que foram criadas”, escreve o professor, em um dos capítulos do livro.
Um velho amor pela história
Durante nossa conversa, Boris conta que sempre amou a história, e sempre teve curiosidade de saber as raízes das coisas. “Para não aceitar as coisas simplesmente como elas são”, explica. “E, para mim, esse caminho sempre foi bifurcado entre as artes, a arquitetura, a história e as ciências sociais.”
No meio de tudo isso, a fotografia.
Boris conta que tirou as primeiras fotografias aos 13 anos. “Uma de um disco voador e outra da Avenida São João, em uma tarde de sábado em 1954.” Teve seu próprio estúdio fotográfico e trabalhou para os principais veículos de comunicação no Brasil. “A partir da década de 1970,
a fotografia ficou mais forte em minha vida. Mas o começo do caminho mesmo foi a fotografia Surpresa na Estrada, publicada no livro Viagem pelo Fantástico (1971), que comemora 50 anos de publicação em 2021. “A descoberta desse caminho, de como diferentes realidades podem estar em um fotograma, se inicia nessa foto”, diz.
Em 1972, começou a publicar em um suplemento dominical, o Suplemento Literário do jornal
O Estado de S. Paulo, uma página sobre fotografia. “Foi numa dessas edições, que publiquei até 1975, que escrevi pela primeira vez sobre Hercule Florence”, lembra. “Esse trabalho me forçou a pensar mais criticamente a história da fotografia. E com uma preocupação maior não só com a história, mas com a teoria”, conta. “E, aí, fui ficando acadêmico. Até demais para o meu gosto”, ri o professor, do auge de seus 44 anos de carreira acadêmica. “Em algum momento, tive de me desacademizar.”
A pesquisa sobre Hercule Florence foi publicada em 1976, ainda antes de seu doutorado.
É um trabalho pioneiro na história da fotografia e se hoje o francês radicado no Brasil
Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879) é reconhecido como um dos inventores da fotografia é pelos esforços de Kossoy.
O fim e o começo
O Encanto de Narciso pode ser considerado uma porta de entrada para outros livros de
Boris Kossoy. Coexistem, no livro, o rigor acadêmico, metodológico, científico, o modo de pensar a fotografia e a leveza das artes que o influenciaram: a arquitetura, a literatura, o cinema e o teatro, entre outras. Os textos poderiam muito bem ser lidos como verbetes.
Dessa forma, podendo ser consultados de várias formas.
É um livro diferente da trilogia, que dosa o texto acadêmico com uma prosa mais leve.
“Eu estava assustado para fazer isso. Mas eu achei que tinha de deixar essa mensagem documentada, que eu fiz essas coisas, de um lado para o outro. Porque normalmente as pessoas têm dificuldade de entender como alguém pode fazer ciência e arte”, explica Kossoy. “Não que eu não tenha feito isso com uma certa dúvida, mas eu sempre gosto de estar inovando, eu me sinto mais vivo assim”, brinca.
Academicamente, Kossoy inaugura, no Brasil, as reflexões sobre o pensamento fotográfico. Pouquíssimos livros brasileiros teóricos sobre a imagem chegaram a seis edições. Existe audiência para essas reflexões sobre a imagem, diferente da usual, e para além de autores como Roland Barthes, Susan Sontag e John Berger.
“Existe um vício de se tentar compreender a natureza da imagem fotográfica em sua expressão pura independente das teorias formuladas para a linguagem verbal, escrita. A imagem não pode ser engessada nesses parâmetros. Ela é uma entidade outra, outra forma de expressão, não discursiva, não se constitui sucessivamente como as frases e os textos, e, sim, simultaneamente e visualmente, em um preciso e singular espaço e tempo”, afirma.
E complementa: “Imagem e linguagem podem, sim, conviver completando-se mutuamente;
de forma articulada, potencializam a comunicação e ampliam o horizonte do conhecimento”.
Kossoy segue inquieto. Levanta várias vezes para me mostrar fotografias e livros. Confirma
o que me disse em maio, quando resolveu publicar uma fotografia inédita e anunciou, em primeira mão, o livro publicado neste mês: segue, durante o isolamento, organizando seu acervo fotográfico, cadastrando imagens, acompanhando virtualmente a reedição e a tradução de alguns de seus livros e fotografando em seu estúdio temas que estavam interrompidos há tempos, como a “alma dos objetos”.
Exatamente como escreve na introdução de O Encanto de Narciso:
"Sigo aqui com uma antiga sedução que é a de tentar compreender o mundo, a memória e a história através das imagens. E, também, a outra face dessa sedução: a de tentar compreender o mundo das imagens em si mesmo, em seus códigos, mistérios e ficções.”