por Amanda Rigamonti

 

Dando continuidade ao tema abordado no texto publicado na segunda-feira (26), os ensaios aqui apresentados refletem um olhar para dentro – para os espaços já conhecidos, explorados e vivenciados, mas que passaram a ganhar outra dimensão em um momento de isolamento social. Objetos que eram já comuns aos olhos e ações que se tornaram quase automatizadas passaram a ser revisitados com um novo respiro, que reflete a angústia da incerteza e a busca por acolhimento em um espaço carregado de história.

Assim se constrói o ensaio Queria Ter te Conhecido na Época em que Você Chorava, da fotógrafa e pesquisadora Alice Nin. “A fotografia me ajudou muito a tentar estabelecer uma rotina no meio deste período confuso, incerto e um tanto desgovernado”, conta Alice. Ela começou a fotografar no início do isolamento, em março deste ano, a partir da provocação de uma amiga também fotógrafa que reside em Berlim, na Alemanha. As duas estabeleceram uma conversa por meio de imagens, um ensaio coletivo, e a prática ajudou Alice a criar uma nova relação com o fotografar. “Depois de um tempo essa prática foi também extrapolando a própria conversa com ela e a câmera virou uma grande parceira em conseguir atravessar aquele período de muita incerteza”, lembra.

Para compor o ensaio, a fotógrafa reuniu imagens produzidas durante essas conversas imagéticas e procurou entender, a partir delas, os recomeços impostos e encontrados: de lidar com um novo tempo, uma nova rotina, um novo espaço. “A partir do momento em que tudo parou, eu tenho que recomeçar uma rotina dentro de casa, em que os marcos temporais são absolutamente diferentes daqueles que eu experienciava antes”, diz Alice. “Acho que essa sensação de redescoberta dos espaços vem muito também de uma redescoberta dos tempos, e do tempo cotidiano mesmo, junto com a minha casa, com subitamente olhar para um canto da casa e perceber que eu nunca tinha reparado que ali havia uma infiltração. Isso só foi possível também porque o meu tempo dentro de casa estava muito diferente do que era antes, apesar de parecer muito similar em vários outros momentos.”

“Eu percebi que a fotografia caminha comigo por onde eu caminho e se desdobra junto a mim a partir da situação em que estou; ela faz parte um pouco do meu cotidiano e do meu corpo de uma forma mais intrínseca do que eu imaginava. Sempre tive a fotografia em um lugar muito... para fora da minha casa. Sempre fui muito para a rua fotografar. Fotografar os trajetos que meu corpo percorre pelo mundo, meus encontros, sempre teve muito a ver com os encontros, com o acaso, com esse corpo que se locomove pelo mundo”, diz Alice sobre o processo de ressignificação da fotografia em sua vida.

Ela conclui que estar em casa e seguir produzindo foi um movimento que a fez entender de outra forma o que são esses seus trajetos. “Esses trajetos não são só físicos, eles não necessitam de deslocamentos físicos. Acho que há uma dimensão de trajeto que se adapta e se reproduz em situações múltiplas e adversas, e a experiência desse ensaio para mim foi muito essa, de descobrir um lugar novo da fotografia no meu cotidiano.”

Karla Melanias, em seu Ode à Floresta, aprofunda seu método de criar, o escanográfico. Karla trabalha há sete anos dessa forma e conta que começou por acaso, por um incômodo, dando início a um processo de subversão do uso do escâner ao colocar sobre ele diferentes materiais vindos da natureza. Para aprofundar essa pesquisa e forma de trabalhar, a artista reside há três anos no Vale do Capão, próximo à Chapada Diamantina, na Bahia, onde vem produzindo sua tese de doutorado para o Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA/UFBA), na linha de pesquisa Processos de Criação.

Ode à Floresta vem do meu sentimento sobre estar em isolamento num lugar em que eu me sinto privilegiada, porque tem uma biodiversidade linda, enorme, e escutar esses sons dos ventos, das ventanias. É um trabalho sobre tudo que existe, e em especial sobre as plantas do caminho, as árvores, sobre as quaresmeiras floridas e a erva daninha que nasce no caminho mesmo. Eu só fazia esse pequeno caminho de 200, 300 metros todos os dias para poder respirar um pouco, então tenho certeza de que o ensaio veio dessa experiência e desse sentimento de conexão, ou reconexão, com a natureza”, conta Karla ao falar sobre como pensou o trabalho.

O ensaio ganhou vida com o encontro da artista com a "Sinfonia no 9" de Beethoven. “Essa referência me ajudou a organizar as ideias e o meu sentir e a minha contemplação em relação a tudo que estava à minha disposição, então eu pude escolher e criar uma narrativa para essa sinfonia da natureza aqui das ventanias como uma grande homenagem à floresta viva”, conta. “Essa foi a minha sinfonia silenciosa com as nove peças, obras, imagens que trazem essa ideia de movimento também numa perspectiva de imagem estática.” O resultado se construiu a partir das reflexões pelas quais ela passou por estar sozinha, isolada, em meio à floresta. “Eu acho que fez muita diferença estar aqui, sozinha, sentindo tudo isso, percebendo também a iminência da morte, ou da transformação, mudança: morte-vida-morte ou vida-morte-vida, e que tudo está muito vivo aqui”, conclui.

Thaís de Campos também tem um método próprio de trabalhar itens coletados na natureza: desde 2018 desenvolve uma pesquisa com slides preparados a partir da coleta de materiais que encontra em suas andanças, entre insetos, folhas e pequenos pedaços de natureza. É um processo único, que ela tenta descrever: “Eu me interesso muito pelos elementos que estão em decomposição, que já estão se transformando. Fico curiosa para vê-los ampliados, sobrepostos, porém esse processo é longo, essa coleta é uma constante na minha vida. Após a coleta, parto para a confecção artesanal das molduras, e daí vou criando as composições em cada slide usando acetato como base, juntando os fragmentos, sobrepondo. Como os fragmentos são muito pequenos, nem tenho ideia de como será o resultado e sempre me surpreendo quando eles são ampliados através do projetor”.

Isso é o que mais a fascina nesse experimento: “Eu observo, coleto os materiais, guardo-os às vezes por muito tempo, confecciono as molduras uma a uma artesanalmente, crio as composições e, embora eu esteja lá totalmente presente em cada etapa, quando vejo a imagem ampliada, projetada, sempre me surpreendo. Eu me vejo lá, mas é sempre muito maior do que eu”.

Com o isolamento imposto pela pandemia, Thaís passou a coletar dentro de sua casa, compondo assim o ensaio Micro Instante Invisível. “Acho que o fato de estarmos em quarentena me permitiu olhar de tantas formas para esse espaço que eu habito que, a partir dessa observação, me veio o desejo de criar esses slides com os fragmentos coletados aqui no meu jardim”, conta. E completa dizendo que este momento propõe outro olhar para o cotidiano. “[O isolamento] nos pede que olhemos de outras formas, que nos demoremos, que vejamos os detalhes, que vejamos o todo, que olhemos repetidas vezes, que nos encantemos com as coisas mais cotidianas e simples.”

Com curadoria de André Seiti e Anna Carolina Bueno, a série analisa algumas fotografias selecionadas pelo edital Arte como Respiro. Os textos são uma pequena amostra do que será apresentado na publicação que reúne todos os escolhidos na categoria Artes Visuais e que será lançada em dezembro de 2020.

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