Victor Gameiro Drummond é mestre e doutor em Direito, especialista em Propriedade Intelectual e Direito do Entretenimento. Temas como direito autoral, propriedade intelectual, ECAD e as mudanças vindas com o Marco Civil da internet são temas de extrema pertinência para a gestão cultural. Victor, que será o convidado do mês de junho do Jornadas Culturais, atendeu com atenção o Observatório Itaú Cultural e ajudou nos a entender um pouco melhor o debate na esfera jurídica.
O Jornadas Culturais conta com uma série de palestras e oficinas gratuitas, com foco em estudantes, profissionais e outros interessados na preservação da memória organizacional. São dez jornadas, oito em São Paulo, uma em Belo Horizonte (MG) e uma em Curitiba (PR). O evento é promovido pelo Centro de Memória, Documentação e Referência (CMDR) do Itaú Cultural em parceria com a Fundação Bunge.
OBS: Recentemente, Olga Sodré, filha do historiador Nelson Werneck Sodré, disponibilizou toda a obra do pai como de domínio público. Pela lei que rege os direitos autorais (Lei 9610/98), a obra do historiador só se tornaria domínio público em 2070, ou seja, 70 anos contados a partir do ano subsequente à morte do autor, neste caso, 1999. Algo raro e louvável tratando se de direitos autorais no Brasil. Em sua opinião, a lei de direitos autorais deve ou não ser revista? Como está o debate nessa área?
VGD: Os direitos autorais sempre foram uma categoria de direito voltada a polarizações e atribuições de vilanias. Há uma constante atribuição de conceitos demasiadamente pueris e maniqueístas, como se pudesse ser atribuída uma relação entre bons e maus. Tradicionalmente foram sendo estabelecidas relações radicais entre gravadoras e artistas, usuários de obras musicais e Ecad, editoras musicais e compositores, somente para citar alguns exemplos. Essa polarização atinge também, atualmente, a interpretação sobre o sistema de direitos autorais brasileiro, no qual identifico uma polarização básica entre grupos que não admitem muitas modificações nos direitos sedimentados (os conservadores) e aqueles que exigem demasiadas e aceleradas modificações (os libertarianistas). Essa oposição dificulta o diálogo e transforma o terreno dos direitos autorais em um (injusto) ambiente de conflito incessante. O que fundamentalmente é necessário é a compreensão de soluções que contemplem os direitos autorais e o acesso à cultura e ao conhecimento.
O Marco Civil da Internet é a lei que regula o uso da internet no Brasil, por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem usa a rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado. Oficialmente chamado de Lei nº 12.965, o Marco Civil começou a ser elaborado em 2009 e foi sancionado somente em 23 de abril de 2014, com ampla participação não só de especialistas da área, mas também da sociedade civil. O Marco Civil contempla de alguma maneira a propriedade intelectual? Se sim, você enxerga alguma mudança nesse cenário no último ano?
De fato, as discussões sobre o Marco Civil foram produtivas, densas e multidisciplinares. Incluíram a análise de temas como proteções à liberdade de expressão e liberdade de acesso à rede; propriedade intelectual; neutralidade da rede e privacidade, entre outros de relevo.
Ocorre que, em relação especificamente aos temas de direitos autorais, o Marco Civil não enfrentou o tema, deixando para outra legislação, que trate especificamente sobre a matéria as soluções inerentes a conflitos dessa categoria jurídica, como se pode ver pelo teor do artigo 19 da lei e seu parágrafo 2º:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
(...)
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal.
O Boletim do Observatório tem investigado casas de música em São Paulo que apoiam bandas independentes e de música autoral. Em visita a uma delas, um dos proprietários criticou a taxa cobrada pelo Ecad, argumentando que muitos desses artistas não chegam a receber o dinheiro que deveria ser repassado a eles. É sabido que o Ecad é uma instituição privada, instituída pela Lei 5.988/73 e mantida pela leis 9.610/98 e 12.853/13. Como você enxerga a atuação desse órgão? E como fazer para que essa arrecadação chegue a esses artistas?
Os usuários de obras musicais sempre reclamam do pagamento ao Ecad, seja sob o argumento concreto de que os valores não chegam aos destinatários, seja por outras razões de ordem econômica. De fato, no universo inerente aos pagadores é muito comum o subterfúgio e as justificativas que têm como interesse o desejo em não ter de arcar com esse custo em suas atividades.
Por outro lado, o Ecad, com sua atuação que transita entre tecnicamente alardeada por seus dirigentes como eficaz, mas percebida pelos titulares como incapaz de solucionar seus problemas de distribuição, vem sendo criticado por todos os setores relacionados ao mercado que têm os direitos autorais como um elemento de composição importante. Ora, o grande problema especificamente do Ecad não é sua atividade de gestão coletiva, mas o déficit de legitimidade em que este se encontra. O Ecad é formado por associações que são compostas de titulares de direitos autorais, entre compositores, intérpretes, editoras musicais e companhias fonográficas. As possibilidades efetivas de controle da instituição estão, obviamente, nas mãos dos conglomerados de entretenimento que dão as cartas na instituição. Daí que compositores e intérpretes, na maior parte dos casos, não se sentem representados e, mais do que isso, se sentem excluídos do sistema de arrecadação e distribuição. É possível que com a nova legislação em vigor, ou seja, a Lei 12.843/13 que alterou a Lei 9610/98, muitos problemas sejam resolvidos, especialmente no que se refere à legitimidade das atuações do Ecad. É também possível que a nova lei facilite o acesso concreto às instâncias decisórias do Ecad e que corrija defeitos que todo o sistema brasileiro foi permitindo ao longo dos anos.
Quanto à nomenclatura, não se trata de taxa, que é um conceito do direito tributário e do direito administrativo, mas de um valor referente ao uso das obras. São valores inerentes a direitos autorais, do universo do direito privado e não de ordem pública.
Sua fala nas Jornadas Culturais irá tratar do direito à propriedade intelectual no que diz respeito a acervos e centros de memória. Dentro desse recorte, para o profissional dessa área, qual a importância de ter conhecimento acerca dos direitos autorais e da propriedade intelectual?
Os direitos autorais não podem ser vistos como “predadores naturais” dos acervos e centros de memória. De todo modo, é muito importante para os administradores ter em mente que as limitações previstas na lei autoral brasileira são pouco favoráveis à livre circulação do conhecimento quando relacionada a bens protegidos por direitos autorais. Isso é particularmente importante quando se trata de escritos, de fotografias, de imagens de obras de artes plásticas e de componentes de arquivos de um modo geral. As limitações estão previstas, como regra geral, entre os artigos 46 e 48 da Lei 9610/98. Por outro lado, o domínio público, ainda que venha sendo eventualmente promovido de modo benéfico para a sociedade (como o acervo de Nelson Werneck Sodré já citado), não é suficiente para permitir uma circulação de obras como talvez se esperasse. Ainda são tímidas as iniciativas de aplicação de domínio público voluntário, por exemplo.
Por outro lado, é importante que os administradores de acervos saibam que o fato de se constituírem como instituições sem finalidade de lucro pode ser benéfico aos objetivos da circulação de obras, mas não é um fundamento definitivo, pois, ao fim e ao cabo, mesmo as instituições sem finalidade de lucro estão vinculadas à valorização de grandes marcas que acabam construindo uma imagem positiva vinculada a bens que, a rigor, estão protegidos.
Definitivamente, o mais importante por parte dos administradores de acervos culturais e centros de memória é atuar politicamente de modo ativo, no intuito de diminuir a possibilidade de incidência dos direitos autorais de forma a prejudicar o acesso efetivo à cultura e ao conhecimento.