por Ramiro Zwetsch

A música é uma ótima companhia durante a quarentena. Sem ela, as crises de ansiedade, solidão e depressão – tão comuns neste período de isolamento social decorrente dos cuidados relativos ao coronavírus – se proliferariam em uma escala ainda maior. A questão é: se a música é importante no cuidado individual, o que se pode fazer para cuidar do futuro dela? As perspectivas não são animadoras para o mercado. Com a necessidade do cancelamento de shows (principal fonte de renda dos artistas), toda uma cadeia de produção fica comprometida – o que envolve equipes técnicas, empresários, assessorias de imprensa etc. A febre das lives nas redes sociais é um paliativo: apazigua relativamente o vazio que se criou na ausência de uma relação direta entre público e artistas, mas normalmente não ajuda ninguém a pagar as contas, tampouco se compara à experiência dos shows ao vivo.

Um estudo realizado pelo núcleo de pesquisa Data SIM entre os dias 17 e 23 de março (no começo da quarentena no Brasil, portanto) aponta um impacto de aproximadamente 483 milhões de reais decorrente do cancelamento de espetáculos. O número é um parâmetro, já que o relatório contempla 536 empresas que responderam ao questionário, 53,2% delas de microempreendedores individuais (MEIs).

“Se a gente pegar só os resultados que teve para os MEIs, que são mais ou menos 270, e expandisse para todos os MEIs do Brasil que trabalham com produção e palco – ou seja, só duas atividades econômicas, que não representam toda a cadeia da música –, haveria um impacto de 3 bilhões de reais, e não de 483 milhões”, observa Daniela Ribas, diretora de pesquisa do Data SIM. “A monetização para os independentes sempre dependeu do ao vivo e agora tem uma guinada para o digital. E aí é necessário um novo arranjo. Não é possível mudar do ao vivo para o digital sem antes fazer um ajuste do ecossistema e de como vai funcionar o fluxo do dinheiro, de novos pagamentos... Managers de banda, por exemplo, que ganham porcentagens sobre o ao vivo: como é que ficam no digital?”

Entre os artistas, a perspectiva de renda por intermédio das lives ainda é uma incógnita. A realidade da esmagadora maioria é muito diferente da de Marília Mendonça (que alcançou 3 milhões de visualizações em uma live recordista) ou de Ivete Sangalo (que teve live transmitida pela Globo, entrecortada por ações publicitárias). “Eu estou sem perspectiva de ganhar dinheiro. Isso significa que não estou pagando aluguel e que todo o dinheiro que estou desviando para comida e boletos (luz, água, internet) uma hora vai acabar”, diz Negro Léo, compositor maranhense residente em São Paulo. Ele anunciou nas redes sociais que não participará de lives de festivais, já que nunca ou raramente foi chamado para a programação desses eventos em um contexto pré-pandemia. “Eu já tenho quase dez anos de atividade profissional, sou uma referência para a minha geração e para a mais nova. Os festivais deveriam fomentar um artista como eu, mas nunca me convidam. Vou botar a minha conta-corrente nas redes sociais e pedir que o pessoal deposite. Acredito que o público que me apoia se solidarizaria.”

Também radicada em São Paulo, a compositora baiana Karina Buhr teve toda a sua agenda de shows cancelada e tem uma apresentação no México prevista para o segundo semestre. “Estava marcada para maio e adiou para setembro. Não tenho muita esperança de que vá rolar, mas preciso ter, já que não tenho nada marcado além disso”, diz. Sobre as lives, ela faz ressalvas. “Não gosto da estética ‘do lar’. É divertido em um primeiro momento, as pessoas estão carentes de interação e música ao vivo, e também curiosas sobre os bastidores, as casas das pessoas. Mas precisa ter uma estrutura mínima de som e luz ou fica parecendo amador. Isso elitiza demais o formato. Não dá para tirar som bonito de instrumento e voz sem microfone legal, sem placa de som no computador, sem um conhecimento da parte técnica. Mais para a frente, podem acontecer coisas, de repente as pessoas se juntarem em cooperativas, em que equipe técnica e equipamentos sejam o motor disso tudo. No momento, a maioria está sem saber como pagar aluguel e sendo convidada para fazer lives de graça e com o microfone do celular, com equipes técnicas e músicos a ver navios. Quando abrir a circulação de pessoas, penso em tentar montar um esquema simples e legal, que possibilite apresentar algo bonito. Provavelmente teremos outras quarentenas pela frente depois desta, então é bom pensar nisso.”

Há também, naturalmente, os momentos memoráveis decorrentes desta onda. Mariana Aydar experimentou um deles. Em uma de suas lives, resolveu aceitar as solicitações de participações que surgiram durante a transmissão, e sua rede social se tornou um palco aberto para talentos anônimos. “Do mesmo jeito que eles queriam entrar na minha casa, eu também fiquei com a curiosidade de saber quem estava do lado de lá. Surgiram artistas maravilhosos de todos os lugares do Brasil: Manaus, Fortaleza, São Paulo, Brasília... Foi uma festa junto”, lembra. “Inclusive, nesse dia eu ganhei um afilhado musical, o Abner Lima, um sanfoneiro maravilhoso de 12 anos. Quando ele chegou à live, foi uma comoção. Depois, ele me escreveu perguntando se eu queria ser a madrinha musical dele. Foi um presente que esta quarentena me deu.”

O caso de Abner é uma exceção. As lives, no formato atual, não oferecem ao artista independente e desconhecido uma oportunidade de ascender na carreira. “O que tem acontecido é que, por causa desse contexto de pandemia, a gente está momentaneamente substituindo o ao vivo pela live. E ela não é um substituto total. É um paliativo, uma solução momentânea. E assim ela deve ser pensada. Contudo, segue sendo um gargalo a monetização das lives, principalmente nas redes sociais. Certamente as grandes gravadoras se interessariam pela monetização desse conteúdo ao vivo, não só o artista”, observa Daniela Ribas. “É bom frisar que existem independentes e independentes. Há independentes que têm estrutura grande de empresa, com patrocínios e dinheiro em caixa – para esses tudo está mais tranquilo. Para os independentes que não têm apoio de marcas nem um público gigante a história é bem diferente”, acrescenta Karina.

 

Ramiro Zwetsch é jornalista, DJ, sócio da Patuá Discos e criador do site Radiola Urbana. Foi curador do projeto musical Rotações, que aconteceu entre 2012 e 2015 no Sesc Santana. Trabalhou no Jornal da Tarde e na TV Cultura, onde foi editor-chefe dos programas Metrópolis e Manos e Minas

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