Citações e alusões na ficção de Machado de Assis
20/01/2022 - 16:07
por Cristiane Batista
Maior escritor brasileiro de língua portuguesa, Machado de Assis tem seu trabalho revisitado em um projeto que investiga a fundo a intertextualidade de sua obra. Com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural 2019-2020, a pesquisadora Marta de Senna reúne no projeto Machadodeassis.net inúmeras referências literárias e históricas dos romances e contos do autor.
No ar desde 2008, o portal machadodeassis.net foi repaginado e ganhou novo projeto gráfico, que garantiu melhor navegabilidade pelo conteúdo, tornando a leitura e a pesquisa mais intuitivas. “O professor sem acesso a grandes bibliotecas tem agora essa ferramenta”, comenta Marta. “Esse é um instrumento de trabalho que pode abrir portas para universos de pesquisa nem imaginados por mim.”
As obras disponíveis no site são acompanhadas de notas técnicas fruto do estudo de Marta, pesquisadora da Casa Rui Barbosa, que estuda, desde 2005 – com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) –, a intertextualidade na obra de Machado. Em notas explicativas, Marta destaca os autores e as obras citados por ele (mesmo que apenas alusivamente), bem como fatos históricos, personagens ficcionais ou históricas e muitas outras referências, como a mitologia clássica e a oriental, provérbios, ditados populares e a Bíblia. São identificados também acidentes geográficos, ruas, teatros, igrejas, constelações, instituições e festividades tradicionais mencionados nas obras de Machado, além de palavras e expressões que têm na ficção do escritor significados diferentes dos de hoje, bem como palavras e expressões em desuso e estrangeiras.
Além disso, quem estiver lendo a ficção machadiana em um livro pode acessar informações sobre as referências citadas, digitando no campo de busca aquilo que procura. Por exemplo: se o leitor está lendo Memórias póstumas de Brás Cubas e se deparar com uma menção à Rua do Ouvidor, ao digitar “Ouvidor” no campo de busca do site, descobrirá, conforme relata a pesquisadora, que “a Rua do Ouvidor, principal rua comercial do Rio de Janeiro no século XIX (e em boa parte do século XX), ia do mar ao Largo de São Francisco e nela ficavam lojas elegantes da época, charutarias, sapatarias, joalherias, lojas de roupas e a sede do Jornal do Commercio, da Gazeta de Notícias e de outros periódicos. Nela se situava também a livraria Garnier, casa editorial de grande parte da obra de Machado de Assis e ponto de encontro da intelectualidade nas últimas décadas do século XIX”.
Pesquisa escolar
Marta conta que a pesquisa começou efetivamente muito antes de ser oficializada e teve início durante sua própria vida escolar: “Eu devia ter de 11 para 12 anos quando li Machado pela primeira vez. Tive bons professores de literatura, e ambos, um homem e uma mulher, eram apaixonados por ele e estimularam ainda mais meu interesse”.
Inspirada por esses professores, a pesquisadora foi estudar na Inglaterra nos anos 1980 e voltou ao Rio de Janeiro como professora de pós-graduação na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sempre pesquisando as referências da obra de Machado. “Comecei a fazer uma tabelinha na qual eu punha o nome da obra dele e o do autor que ele citava ou ao qual fazia uma alusão mais ou menos disfarçada. Fiz concurso para a Casa de Rui Barbosa em 2002 e apresentei essa indexação como projeto de pesquisa”, explica.
A coleta de dados teve muitas fontes e métodos. “Quando eu comecei, pesquisava em dicionários de literatura, em enciclopédias de citações, tudo em papel. Depois vieram a internet, plataformas de publicação de estudos e a troca de conhecimentos com outras pessoas, possibilitando a localização de obras do século XVIII ou até do século XVI”, comenta. “No cruzamento dessas informações, eu e uma assistente de pesquisa que era bolsista e hoje é professora, a Laísa Verçosa, nos deparamos com a citação de uma história meio louca de um sujeito que teria atravessado o [Rio] Tejo com botas de cortiça. De onde é que o Machado tinha tirado isso? Como é que eu ia achar essa referência? Por acaso, a Laísa estava lendo, para outra disciplina, Viagens na minha terra, do escritor português Almeida Garrett, no qual também aparece o personagem.”
Para ela, um dos méritos do projeto é trazer um novo e necessário entendimento daquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. “Acho que é fundamental que hoje se tenha essa consciência de Machado como um escritor negro, que a minha geração não teve. Machado foi muito monumentalizado no Brasil, sobretudo no Estado Novo. O professor Hélio de Seixas Guimarães tem uma pesquisa maravilhosa sobre isso, sobre como ele foi transformado em glória nacional e, tendo em vista a época em que viveu, foi muito ‘embranquecido’”, comenta ela.