Cinema, mulheres e memória: diretoras brasileiras e a ditadura militar
28/07/2021 - 09:00
Uma das cenas mais marcantes de Ana. Sem título, novo filme da diretora Lúcia Murat, é um plano aberto que mostra uma inscrição na arquibancada do Estádio Nacional do Chile, em Santiago: “um povo sem memória é um povo sem futuro”.
A reflexão sobre o passado do Brasil, especialmente o período da ditadura militar, está na essência da obra de Lúcia Murat. De seu primeiro longa-metragem, Que bom te ver viva, lançado em 1989, a Ana. Sem título, que estreia neste mês nos cinemas, a diretora abordou diferentes aspectos de uma experiência que viveu de perto, tendo sido presa e torturada durante o regime. Como Lúcia, muitas outras cineastas brasileiras – incluindo Flavia Castro, Tata Amaral, Beth Formaggini, Emilia Silveira e Tuca Siqueira – usaram a ficção e/ou o documentário para relembrar esse duro período da história brasileira, que deixou mais de 430 mortos ou desaparecidos e durante o qual 20 mil pessoas foram torturadas, segundo dados da Human Rights Watch.
Se a ditadura militar já era tema recorrente na produção audiovisual brasileira nos últimos anos, os filmes (novos e antigos) ganharam relevância e urgência. Num país onde parte da população sai às ruas para pedir a volta da ditadura e elege presidente um homem que elogiou publicamente um torturador, a frase estampada no estádio chileno ecoa mais forte do que nunca e parece explicar, ao menos em parte, a trágica situação atual.
Uma pesquisa do Instituto Datafolha divulgada em junho de 2020 confirma que a desinformação sobre a ditadura persiste. Embora a grande maioria (75%) dos entrevistados veja a democracia como a melhor forma de governo em qualquer circunstância, 10% afirmaram que a ditadura é melhor em algumas situações, enquanto 12% disseram que “tanto faz” qual regime de governo é adotado. Na mesma pesquisa, 25% dos entrevistados consideraram que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas e 13% disseram não acreditar que houve ditadura no Brasil (outros 10% não souberam responder). Além disso, 49% dos entrevistados disseram não conhecer o Ato Institucional Número 5 – nem ouvir falar dele –, que levou o regime à sua fase mais brutal.
Não é uma página virada
Atentas a esse contexto, muitas das realizadoras brasileiras que abordam a ditadura evitam tratar o período como página virada e preferem, ao contrário, destacar as conexões entre passado e presente. É o caso de Deslembro (2018), primeiro longa-metragem de ficção da diretora Flavia Castro, que é filha de militantes e viveu no exílio dos 5 aos 14 anos. Sua história inspira livremente a da protagonista do filme, Joana, uma adolescente que vive em Paris com a família quando a anistia é decretada no Brasil. Contra sua vontade, ela tem de voltar a um país do qual mal se lembra. E, uma vez nele, começa a buscar lembranças e informações sobre o desaparecimento de seu pai nos porões do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Flavia escreveu o argumento do filme em 2009 e finalizou o roteiro em 2017, quando a situação política, social e sanitária do Brasil não era tão grave quanto agora. Mas, já naquele momento, ela se incomodava com o modo como a questão da memória era tratada institucionalmente. “O filme é a história pessoal de uma menina, mas há outra leitura, que é o ‘deslembro’ do país, ou seja, a falta de memória do país em relação à sua história”, contou a diretora em uma entrevista que fiz na época do lançamento. “No Brasil não houve trabalho político de memória como houve na Argentina e no Uruguai. Na Argentina, é impossível mesmo para uma pessoa de direita negar a ditadura militar ou dizer que ela foi boa. Aqui isso existe e existe porque, de alguma forma, as interpretações da Lei da Anistia e a maneira como fizemos a transição democrática foi muito ambígua e complicada. Fizeram-se alianças que acho que não era possível fazer e agora estamos pagando caro por isso.”
Da mesma forma, Lúcia Murat escreveu, em 2018, o roteiro de Ana. Sem título, antes da última eleição presidencial. Livremente inspirado na peça Há mais futuro que passado, escrita por Daniele Avila Small, Clarisse Zarvos e Mariana Barcelos, o longa combina documentário e ficção para contar histórias de artistas latino-americanas dos anos 1970 e 1980. Quem conduz o espectador é Stela, atriz que desenvolve um trabalho baseado em cartas trocadas por essas artistas e que viaja por Cuba, pelo México, pela Argentina e pelo Chile em busca de informações sobre elas e sobre Ana, uma misteriosa brasileira frequentemente mencionada nas correspondências.
Lúcia conta que, embora a ditadura militar sempre fizesse parte do contexto histórico do filme, a perspectiva inicial era principalmente conhecer a trajetória de artistas mulheres que ela mesma desconhecia. “Era algo que tinha muito mais a ver com descoberta e prazer do que com derrota”, definiu a diretora em entrevista por telefone. Durante as viagens, ela foi se deparando com espaços como o Estádio Nacional do Chile, que serviu de prisão e local de tortura durante os primeiros meses do regime de Augusto Pinochet, em 1973.
Em vez de esconder esse passado vergonhoso, o Chile preservou a estrutura da época e transformou parte do estádio em memorial. “À medida que fomos filmando, a questão dos direitos humanos e dos museus começou a se impor”, explicou Lúcia. “Ficou claro que nunca trabalhamos nossa memória de fato e que o desconhecimento e a inexistência de centros como esse têm muito a ver com a realidade que estamos vivendo no Brasil.”
Produção variada
É claro que cabe principalmente ao Estado, e não apenas ao cinema, encarar o legado da ditadura militar. Mas os filmes podem estimular debates e reflexões, e as diretoras brasileiras têm usado diferentes formatos, narrativas e estratégias para se comunicar com o público. Em Deslembro, Flavia Castro elege uma adolescente como protagonista e insere o filme no gênero conhecido como coming-of-age, que acompanha um momento de transformação na vida de um jovem. Nota-se também o esforço do filme em não demarcar demais o momento histórico no qual a história se passa (logo após a anistia, declarada em 1979). “Nunca me interessou fazer um filme de época, com reconstituição histórica e detalhes meticulosos”, contou Flavia. “Queria um filme atemporal, de uma situação que a gente sabe que aconteceu naquela época, mas que segue acontecendo hoje, em vários países e lugares.”
Tempo presente
É interessante notar que muitos dos longas ficcionais sobre a ditadura são ambientados no presente. É o caso de Amores de chumbo (2017), de Tuca Siqueira, que narra o reencontro de um ex-casal de militantes após 40 anos; e de Trago comigo (2016), de Tata Amaral, sobre um diretor de teatro e ex-guerrilheiro que encena uma peça a partir de suas memórias e de improvisações de atores bem mais jovens do que ele.
O debate geracional também é marcante em Ana. Sem título, graças à presença em cena de dois jovens integrantes da equipe: o diretor de fotografia Leo Bittencourt e a técnica de som Andressa Neves. A participação de Andressa é especialmente importante porque, sendo uma mulher negra, ela chama a atenção para os paralelos entre a violência do regime militar e a violência racial que segue sendo cometida diariamente no Brasil.
Documentos e documentários
Os documentários também são parte fundamental da produção audiovisual sobre a ditadura. Um formato bastante utilizado é o “filme de busca”, no qual cineastas recuperam a trajetória de militância de um parente próximo, buscando o universal dentro do pessoal. Exemplos incluem Diário de uma busca (2010), no qual Flavia Castro investiga a vida e a morte de seu pai, o jornalista Celso Castro; Marighella (2012), em que Isa Grinspum Ferraz lança luz sobre seu tio, o parlamentar e autor Carlos Marighella; e Os dias com ele (2012), no qual Maria Clara Escobar volta a câmera para ela e seu pai, o filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar.
Outras diretoras criaram seus filmes entrelaçando testemunhos de sobreviventes, imagens de arquivo e até documentos produzidos pela própria repressão. É o caso de Setenta (2013), no qual Emilia Silveira conta a história de um grupo de presos políticos enviado ao Chile em troca da libertação do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher; e Retratos de identificação (2014), de Anita Leandro, que parte das fotos de presos políticos tiradas durante investigações, interrogatórios, exames de corpo de delito e inquéritos policiais.
Na variada produção feminina sobre a ditadura, há muitos outros formatos e abordagens possíveis. Em histórias que nosso cinema (não) contava (2018), Fernanda Pessoa faz uma releitura histórica da ditadura militar utilizando trechos de 27 pornochanchadas produzidas no período. Em Torre (2017), Nádia Mangolini cria uma comovente animação para contar a história dos quatro filhos do desaparecido político Virgílio Gomes da Silva. E, em De Dora por Sara (2020), a atriz e diretora Sara Antunes (que interpreta a mãe de Joana em Deslembro) mergulha no cinema experimental e em cartas da guerrilheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, que foi presa, torturada e banida para o Chile.
O lado de lá
Histórias e informações a ser descobertas não faltam, e mesmo Lúcia Murat, que tantas vezes abordou a ditadura nos 13 longas-metragens de sua carreira, se prepara para um novo desafio. Seu próximo filme, O mensageiro, será sobre o encontro entre um soldado e a mãe de uma presa política. “Sempre tive muita dificuldade de lidar ficcionalmente com o lado de lá”, afirmou. “Mas é interessante poder falar de personagens que costumam ser vistos de forma secundária nos filmes sobre a época e trabalhar a possibilidade de diálogo entre os dois, especialmente neste momento de polarização.”
Para a diretora, a cinematografia brasileira sobre a ditadura é importante, mas ainda pequena se comparada a de países como a Argentina. “Acho que, quando o cinema retornar, esse tema vai retornar também”, afirmou. “É uma parte terrível da nossa história e, para entendermos o que estamos vivendo hoje, é importante voltar para lá.”