por Ana Paula Sousa

Rebecca Walton assumiu o posto de diretora regional do British Council (BC) em 2015, apenas oito meses antes do Brexit, negociação para a separação do Reino Unido da União Europeia. Responsável pelo relacionamento da instituição com outros 30 países, ela diz que vem enfrentando, nos últimos três anos, o maior desafio profissional de sua vida.

Funcionária do BC desde 1985, Rebecca ocupou outros cargos altos na instituição. Esteve à frente das diretorias de assuntos corporativos; artes; e parcerias e desenvolvimento de negócios. Na entrevista a seguir, concedida de Londres por Skype, ela fala sobre o seu trabalho à frente de uma das principais instituições culturais do mundo e reflete sobre os desafios que a nova configuração política impõe ao setor.

foto: divulgação

Você tem um background em educação. De que forma isso influencia sua ação à frente de projetos culturais?

O BC é uma instituição cultural, mas nosso trabalho sempre envolve educação. E, quando falo em cultura, não estou falando em arte, estou falando em cultura no sentido mais amplo, que é o que essa palavra tem na língua inglesa. A cultura diz respeito à vida de todos nós; ela diz respeito, inclusive, à ideia de igualdade. Falando sobre mim, especificamente, tenho um background em educação e estudei filosofia. Na juventude, dei aulas no setor da educação infantil. Também trabalhei com educação na antiga União Soviética. Ao longo de minha carreira, fui, no entanto, sendo levada cada vez mais para perto da cultura e tive de desenvolver habilidades nesse setor. O grande desafio, nesse sentido, viria quando assumi a diretoria de artes do BC [departamento responsável por todas as ações que a instituição promove, mundialmente, no setor artístico]. Apesar de não ser grande, é um departamento muito importante no BC. Quando fui indicada para a diretoria, ele estava passando por uma crise muito grande. Para garantir que eu não cometesse nenhum deslize, chamei, para me ajudar nas questões eminentemente artísticas, um especialista em artes. Com isso, pude me dedicar de forma integral ao gerenciamento do departamento.

Sobre as experiências que você teve em países como Rússia e Paquistão: eram projetos culturais?

Não no sentido estrito. A primeira vez em que estive na União Soviética foi no início da década de 1980. À altura, eu dava aulas numa escola internacional em Moscou. Essa foi uma experiência fundamental para que eu abrisse a minha cabeça, expandisse o meu olhar e passasse a ser capaz de entender e absorver as características de diferentes lugares e ambientes. Eu voltaria à Rússia na década de 1990, já pelo BC, para trabalhar num programa ligado à educação. A União Soviética tinha uma educação de alta qualidade, marcada por grandes conquistas, mas que era extremamente rígida e não permitia o desenvolvimento de um pensamento criativo. Nos anos 1990, a Rússia quis mudar esse sistema, implantando um novo pensamento na educação, mais ligado à criatividade. Ou seja, tratava-se de um desafio diretamente ligado à cultura – de novo, à cultura num sentido que extrapola as artes. E foi isso que tentamos ajudá-los a fazer. No caso do Paquistão, o projeto era essencialmente educacional e envolvia uma mudança de currículo, sobretudo para as crianças. Hoje, com a questão do terrorismo, acho que seria muito mais difícil desenvolver um trabalho como esse lá.

O que a educação pode trazer para a cultura e o que a cultura pode trazer para a educação?

Existe uma tendência na educação, que se vê no mundo tudo, de se limitar a experiência da criança. Mas a criança tende a alcançar melhores resultados quanto mais ela é respeitada em suas experiências, e não podada. É aí que entra a cultura. Quando você limita demais a criança a determinados currículos, tira dela as oportunidades abertas pela cultura, a chance de descobrir, por si, coisas que a fascinem. A criança, em sua vida escolar, precisa de tempo para vivenciar a cultura em seu sentido mais amplo.

No Brasil, fala-se muito que, enquanto as pessoas não tiverem acesso a uma melhor educação, elas também não conseguirão desfrutar da cultura – agora mais no sentido das artes mesmo. Você concorda com isso?

Essa é uma questão delicada. Existe uma cultura riquíssima que não tem qualquer relação com a educação. De certo modo, a cultura vem antes da educação. Uma criança, muito antes de ter qualquer educação formal, já se relaciona com a música, com a pintura... Uma pessoa pode ter um alto nível de educação formal e não ter interesse pelas artes, assim como uma pessoa com pouca educação pode ser tocada por elas.

Em outra entrevista, você comentou a importância dos acordos multilaterais e da colaboração entre os diferentes países para o desenvolvimento da cultura e da educação. Que tipo de acordos o BC procura firmar?

Nós procuramos trabalhar com parcerias de longo prazo, e não com simples ações de patrocínio. Cada vez mais, tentamos atuar com o setor privado, mas admito que raramente temos sucesso. Conseguir um patrocínio para uma grande exposição pode não ser tão difícil, mas conseguir firmar parcerias de longo prazo é. Um caso de sucesso é o projeto que conseguimos desenvolver com a Microsoft na África [o projeto Badiliko, que teve início em 2011, inclui a criação de hubs digitais em escolas e comunidades de diversos países do continente e o desenvolvimento de professores e alunos]. Mas esse projeto, que impacta todo o setor educacional nos países beneficiados, é exemplar das dificuldades de se desenvolver algo dessa magnitude. Porque não se trata de simplesmente distribuir iPads entre os alunos. A educação é uma área muito delicada, até porque os currículos são extremamente politizados em todos os países.

O que você quer dizer quando fala em currículos politizados?

Os currículos tendem a ser muito controlados pelos governos. A interferência dos governos naquilo que é ensinado é muito grande, em muitos lugares.

Mesmo na Europa?

Sim, em todo lugar. A diferença é que, nos países mais pobres, essa interferência está muito ligada a quem está dando o dinheiro. No Zimbábue, por exemplo, toda escola hoje tem de ensinar mandarim. Isso significa que, para fazer grandes projetos na área de educação, temos de enfrentar longas e complexas negociações. E, quando estamos trabalhando com grandes bancos ou com uma empresa como a Google, estamos falando de algo que vai muito além do puro e simples patrocínio. São empresas que sabem exatamente o que querem.

Você falou da dificuldade de se fazer parcerias com o setor privado. Quando as empresas se interessam em apoiar a cultura?

A associação com as artes carrega consigo a ideia de prestígio. Isso é especialmente evidente nas artes visuais. Há, por exemplo, muitas empresas interessadas em associar o seu nome às grandes exposições realizadas em Londres. Mas, se você fala de um evento local, numa cidade menor, a história é completamente outra. Ou seja, não existe uma única resposta para essa pergunta. Depende muito do tipo de projeto e do tipo de empresa.

De que forma a chegada de políticos conservadores e ultranacionalistas ao poder, em diferentes países, pode afetar o financiamento público à cultura? Como tem sido isso no Reino Unido?

No Reino Unido, o financiamento público está permanentemente em risco. Apesar de o setor cultural inglês ser muito estruturado, graças à soma de recursos do Estado com recursos privados e dinheiro da loteria, quando saímos de Londres a situação é bem delicada; é difícil conseguir financiamento. Acho que a pressão sobre os recursos para a cultura existe em todos os lugares. A questão é o que significa essa pressão nos diferentes países. Os alemães dizem que a cultura está sob pressão. Mas não é possível comparar essa pressão com a que existe em Portugal, por exemplo, onde os recursos são tradicionalmente muito menores. No caso da Inglaterra, a situação de Londres, como eu disse, é privilegiada, sobretudo no segmento de museus – porque, mesmo em Londres, as bibliotecas locais e os pequenos teatros estão passando por dificuldades. Um dos grandes problemas do dinheiro público é que ele depende de resultados. Para ter acesso aos recursos, um projeto deve atender a uma série de exigências e encaixar-se em determinadas métricas.

Quais métricas?

São muitas. Um projeto feito com recursos públicos deve, por exemplo, cumprir exigências de diversidade, de acessibilidade e de oportunidade para iniciantes, entre outras. Há também uma série de exigências ligadas à governança e à capacidade de se medir resultados – e essa medida não pode ser apenas de ordem financeira. Essas exigências tornam muito difícil o acesso aos recursos públicos.

As dificuldades aumentaram após o referendo?

Sim, nós vivemos um momento especialmente difícil. Eu assumi este cargo apenas oito meses antes do referendo e este tem sido, muito provavelmente, o maior desafio da minha vida profissional. Desde o Brexit, meu trabalho tem sido, basicamente, de redução de danos nas áreas da cultura e da educação. Desde que fomos separados do resto da Europa, temos tido de nos dedicar ainda mais às negociações com ministros e com o governo. Existe menos dinheiro para o setor das artes e menos espaço político para o intercâmbio de ideias e para as trocas entre os artistas. Nosso papel é, como eu disse, tentar reduzir os danos deste momento político.

E vocês têm tido sucesso nessa tentativa?

Um pouco, talvez. Acho que temos conseguido, pelo menos, alertar as pessoas para os riscos que corremos e encorajá-las a trabalhar de forma conjunta, colaborativa, unindo forças e buscando efetivas parcerias. O lobby da educação junto ao governo é mais forte do que o da cultura. E a cultura precisa estar unida à educação nessa batalha contra os retrocessos. Precisamos estar todos unidos.

Ana Paula Sousa é jornalista, mestra em indústrias culturais e criativas pelo King’s College, de Londres, e doutora em sociologia da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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