por Maria do Rosário Caetano

 

Tangos & Tragédias, espetáculo musical com referências teatrais, nasceu da imaginação dos gaúchos Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky, em 1984. No mesmo ano, o jovem Otto Guerra, também gaúcho, iniciava sua carreira dedicada integralmente ao cinema de animação, apresentando no Festival de Gramado seu primeiro curta, O Natal do Burrinho.

Trinta anos depois, Hique, Nico e Otto estariam juntos em Até que a Sbórnia Nos Separe, terceiro longa-metragem do irrequieto cineasta. Otto já assinara seis curtas, um episódio do longa brasileiro-germânico Os Sete Sacramentos de Canudos (o belíssimo “Arraial”) e dois longas – Rocky & Hudson – os Cowboys Gays (1995, baseado em tiras de Adão Iturrusgarai) e Woody & Stock – Sexo, Drogas e Rock'n Roll (2006, recriação dos personagens de Angeli). Agora, finaliza Cidade dos Piratas, a partir de Piratas do Tietê, tiras de Laerte.

Até que a Sbórnia Nos Separe é uma reinvenção livre de Tangos & Tragédias, espetáculo que estaria ainda em nossos palcos se Nico Nicolaiewsky (1957-2014) não tivesse morrido aos 56 anos, antes do lançamento comercial do filme. Para evocar sua memória, Otto fez imprimir, na abertura de sua narrativa, dedicatória saudosa: “A Nico, o primeiro sborniano a encontrar o caminho da ilha”.

O realizador gaúcho dirigiu seu terceiro longa-metragem em parceria com Ennio Torresan, profissional brasileiro radicado nos Estados Unidos (tendo participado, inclusive, da equipe do blockbuster Madagascar). Famoso por sua imaginação sem limites e alma anarquista, Otto necessitava da ajuda de alguém habituado à disciplina da indústria norte-americana. Um parceiro capaz de realizar um storyboard rigoroso, que levasse o filme ao seu the end. Torresan ajudou, mas não domou o inquieto animador gaúcho.

Até que a Sbórnia Nos Separe é fruto de criação metalinguística, que exige esforço e concentração do espectador. Já nos créditos, o diretor dialoga com os velhos filmes impressos em celuloide, aqueles que, de tanto serem exibidos, trepidavam na tela, cheios de riscos. Findos os créditos iniciais, temos nosso primeiro contato com Kranus, desenhado com as feições de Hique Gomez, e Maestro Pletskaya, com as de Nico Nicolaiewsky. Os dois protagonistas tentam salvar-se em meio à hecatombe que ameaça varrer do mapa a Ilha de Sbórnia, outrora um paraíso isolado. O território pátrio de Kranus & Pletz sofre as consequências da erupção do vulcão que parecia extinto.

Um recurso metalinguístico intervém na ação. Rebobina-se a fita. Uma voz infantil, a de Dimitrius, filho de Kranus, assume a função de narrador. Um longo flashback mostra os antecedentes da tragédia. O pequeno país, a Ilha de Sbórnia, ligado ao continente por um istmo, vivia com alegria seus dias e noites. Mulheres caminhavam alegremente pelas ruas com passos sincronizados e dançantes, os homens conversavam nos bares e tomavam seu “chimarrão” preparado com erva exótica, a bizuwin.

Tudo muda quando uma mistura de praça de touros e estádio recebe duas equipes de praticantes do machadobola, jogo brutal e paixão dos sbornianos. A disputa ferrenha pela bola e as cabeças cortadas a machado chegam ao paroxismo. A confusão se avoluma. Resultado: a muralha que protege a Ilha não resiste e cai no chão.

Sem a proteção fronteiriça, os continentais invadem a pequena Sbórnia e trazem seus costumes modernos e sedutores. O poderoso empresário Gonçalo Delacroix (voz de André Abujamra) industrializa o exótico e alucinado bizuwin, que a todos seduz. A produção da bebida decuplica. Os campos semeados são incapazes de fornecer a necessária matéria-prima. O jeito, então, é buscar a planta no fundo do mar, “próximo à camada do pré-sal”. Lembremos que o filme se baseia em “fatos surreais”.

Kranus e Pletskaya, os dois músicos que são a alma de Até que a Sbórnia Nos Separe, vivem experiências diferentes ao longo da trama. O primeiro, casado e pai de um menino, briga com a esposa. Influenciada por ideias feministas, a jovem senhora passa a exigir seus direitos (numa inversão divertida, ele queima o colorido sutiã dela).

Pletz, por sua vez, se apaixona pela jovem Cocliquot (voz de Fernanda Takai), filha do casal Delacroix (o ambicioso Gonçalo e sua esposa, a megera Alba, que fala pela voz inconfundível e aliciante de Arlete Salles). Para entrar na mansão dos Delacroix, Pletz se apresenta como professor de piano da jovem. Seu amor é correspondido por Cocliquot, prometida em matrimônio a um decrépito bilionário de quase cem anos.

Muitas vezes o cinema será evocado por Otto. Seja num pesadelo de Kranus, construído à moda do expressionismo alemão (com elementos de terror gore), seja num filme visto pela sra. Kranus e pelo pequeno Dimitrius. Em momento de rara criatividade, o irrequieto cineasta dessacraliza a célebre sequência da escadaria de Odessa, do Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein (1925), definida pelo britânico Eric Hobsbawm, no livro A Era dos Extremos, como “os oito minutos mais influentes da história do cinema”. Cenas do embate entre os fuzis e as baionetas dos soldados do czar que enfrentam o povo rebelado serão intercaladas com imagens de Nosferatu, de Murnau, e de King Kong, de Cooper & Schoedsack. Quando as luzes se acendem, a sra. Kranus comenta com o menino: “Mas só tinha desastre nesse filme!”.

Até que a Sbórnia Nos Separe, como não poderia deixar de ser – lembremos sua origem musical e seus protagonistas, um violinista e um acordeonista –, conta com eficiente trilha sonora (composta por Abujamra, Hique e Nico). E com números musicais bem conhecidos do público: “Rosa”, a imensa e bela valsa de Pixinguinha, que fará divertido contraste com “Não se Reprima” (à moda dos Menudos), representante da música de consumo trazida pelos modernos costumes e gostos do continente. Na voz de Fernanda Takai ouvimos “Trevo de Quatro Folhas”, versão de Nilo Sérgio. Durante os longos créditos finais do filme, o Duo Hique & Nico canta dois dos maiores sucessos da trilha do espetáculo mantido em cartaz ao longo de três décadas.

Ao ver (ou rever) Até que a Sbórnia Nos Separe neste ano de 2017 – quando a animação brasileira comemora seu centenário –, devemos ficar atentos a seus momentos mais inventivos. Afinal, esta narrativa surreal expõe, ao longo de seus 93 minutos, sequências inesquecíveis, que se somam à louca colagem potenkínica-nosferatiana-kingkonguiana. Não há como resistir ao aliciante balançar de quadris das sbornianas. Nem ao quiprocó advindo de maluquice do pombo-correio Hermes (que picota e deturpa mensagem enviada por Cocliquot a Pletz trazendo desespero ao músico apaixonado). Como resistir às assembleias do Caos (Centro dos Anarquistas Hiperbólicos), cujos associados (um deles desenhado à imagem e semelhança de Trotsky) debatem a reconstrução da muralha de Sbórnia com tijolos reciclados de dejetos humanos, em razão da carência de tijolos de lava vulcânica?

Muitos se divertirão, pela familiaridade, com a sequência que evoca a brincadeira “descubra o nome do filme”: ao reencontrar o amigo Pletskaya, o violinista Kranus, sem fôlego e voz por causa da hecatombe provocada pelo vulcão recorre à mímica para explicar os acontecimentos. No início, Pletz não consegue decifrar os gestos do amigo, mas depois o faz com a recorrente velocidade dos famosos desenhos animados das tardes televisivas.

Otto e sua turma realizaram um filme de trama complicada, mas que, por seus momentos irresistíveis, conquistou o Prêmio do Público no Festival de Gramado e na Mostra Internacional de São Paulo. Prêmios que comprovam por que o cineasta, de 61 anos, se tornou um de nossos mais importantes animadores.

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