As fotógrafas, a rua e o empoderamento | Entrevista com o Mamana Foto Coletivo
13/02/2019 - 13:30
“Mamana é um coletivo de fotógrafas mulheres. É vaca, puta, vadia. Coisa que empodera. Eu vou à rua com a minha câmera.” É com essas palavras fortes que o Mamana Foto Coletivo se descreve no vídeo Portfólio Mamânico. Juntas desde 2016, as fotógrafas registram e documentam o que acontece no Brasil, com o objetivo de levar o olhar das mulheres de forma independente e de ser uma rede entre fotógrafas, não só para divulgação dos trabalhos, mas também com o intuito de criar um espaço em que elas possam se sentir representadas e trocar experiências sobre fotografia, política e feminismo. Com esse pano de fundo, o lema do grupo é “Mamana somos todas nós! Todas as mulheres que querem fotografar e fotografam são Mamanas”.
Para conhecer mais o trabalho delas, o Observatório Itaú Cultural conversou com Mel Coelho, Bruna Custódio e Gabriela Biló. Além delas, também são integrantes fixas Jacqueline Lisboa e Janine Moraes. Na conversa, falamos sobre a origem e o funcionamento do coletivo, as suas experiências em manifestações, a influência da rua nas fotos de cada uma e também sobre como elas veem o cenário da fotografia atualmente, marcado, segundo elas, por uma “democratização” da fotografia.
Apesar de o coletivo ter se formalizado em 2016, suas origens remontam a junho de 2013. Nesse momento histórico, milhares de brasileiros foram às ruas protestar contra o aumento das passagens de ônibus. Com a grande adesão de pessoas, as manifestações ganharam corpo e passaram a incluir inúmeras outras pautas. O lema “não é só pelos 20 centavos”, que surgiu no contexto específico da cidade de São Paulo, descreve bem esse cenário. Além desse, outro acontecimento igualmente importante foi a ocupação de escolas pelos estudantes secundaristas, ocorrida em 2015, contra a reorganização das unidades de ensino médio do estado de São Paulo. Nas palavras da Mel:
“Não dá para falar do surgimento do coletivo sem voltar ao que foi 2013, porque a gente é meio que fruto disso também. Muitas fotógrafas iam registrar as manifestações de forma livre e independente, mas ainda não existia um coletivo em que elas pudessem se encontrar e trocar ideias tanto sobre fotografia quanto sobre política e feminismo. Era uma coisa mais individual mesmo. Nessa época das ocupações, eu fui fotografar uma das escolas na Zona Oeste, a Di Cavalcanti, e essas fotos eu subia na internet. Não tinha muito por onde escoar, porque eu não era fotojornalista, não era ligada a nenhum jornal ou meio de comunicação, era uma fotógrafa independente querendo fazer alguma coisa, querendo contar uma história. Nessa onda, eu conheci a Renata Armelin, que se tornou uma grande amiga e superparceira. Ela estava na mesma pegada, registrando as escolas que estavam ocupadas nas periferias, participando ativamente dos movimentos de ocupação. A gente se conheceu pela internet, vendo a foto uma da outra, e combinou de se encontrar. Nessa troca, a gente pensou: ‘poxa, falta mesmo um lugar, eu tenho vontade de conversar com mais mulheres. Onde estão as fotógrafas neste momento político forte?’. Então o coletivo veio muito dessa vontade de juntar as mulheres, de participar do momento político que o Brasil estava vivendo desde 2013, de documentar a perspectiva das mulheres, a nossa visão desse momento histórico”.
O coletivo veio muito dessa vontade de juntar as mulheres, de participar do momento político que o Brasil estava vivendo desde 2013, de documentar a perspectiva das mulheres, a nossa visão desse momento histórico
A partir daí, juntou-se ao coletivo a Gabriela, agregando sua experiência em fotojornalismo. Posteriormente, a rede foi sendo ampliada com fotógrafas de estados além de São Paulo. Essa ambição de fortalecer o grupo parte muito da realidade de que fotografia de rua e fotojornalismo são muitas vezes considerados áreas masculinas. Sobre o assunto, Gabriela comenta:
“Quando vamos cobrir uma situação ou algum evento, nós observamos que o número de fotógrafos é muito superior ao de fotógrafas. Você vê pouquíssimas mulheres e há várias histórias de mulheres que tiveram seu trabalho roubado ou diminuído pelos homens. Então, a ideia foi justamente mostrar que existem outras mulheres fotografando, dizer ‘você não está sozinha’, tirar dúvidas e até publicar os materiais. Você quer fotografar a rua, podemos de repente fazer um catálogo ou pedir para colaboradoras enviarem fotos para fazermos uma grande cobertura. É o que falamos sempre: ‘O Mamana somos todas nós! Todas as mulheres que querem fotografar e fotografam são Mamanas’”.
Gestão horizontal: tudo decidido no diálogo
A organização também é um ponto importante para o Mamana. Como elas próprias ressaltam, as decisões são tomadas sempre coletivamente. Sem cair em um modelo engessado, todos os pontos são passíveis de discussão, fazendo com que os trabalhos fluam bem. Quando há demandas para o coletivo, realizam sempre uma conversa antes, para saber quem tem interesse e disponibilidade para fazer, quem pode contribuir ou quem já fez algum trabalho que atenda à proposta. Até mesmo quando há necessidade de fazer curadoria para algum projeto, elas sempre priorizam o diálogo e a decisão coletiva. Nesse sentido, Bruna Custódio exemplifica:
“Acontece de a gente querer subir um ensaio e fazer uma curadoria on-line com todas juntas. Pegamos o material bruto e cada uma vai dando sua opinião, selecionando as fotos. E daí, quando a gente se reúne, discute as escolhidas, porque às vezes tem uma foto sua que você gosta muito e que não está lá, e então você defende, argumenta, monta uma narrativa. Tudo é escolhido por meio do diálogo”.
Outra questão que demandou debate foi a dos créditos. Como nos contou Mel, em um primeiro momento, as integrantes fixas assinavam como “mamana.coletivo”. Porém, como um dos objetivos do coletivo é valorizar a mulher fotógrafa, era importante dar visibilidade para quem havia feito a fotografia. Assim, as assinaturas passaram a ter o formato “Mel Coelho/Mamana Foto Coletivo”, para dar destaque a quem está produzindo e também ao coletivo.
A gestão financeira segue igualmente essa filosofia. Quando é apresentada alguma proposta, elas discutem se alguém está precisando particularmente do trabalho ou qual a porcentagem que será destinada para o coletivo. Há situações em que é necessário cobrir custos de viagem – quando há atividades em outras cidades – ou custear a manutenção do site. Para tudo isso, é separada uma parte do valor, que fica na caixinha do coletivo. O processo todo “é bem democrático e todas têm muito bom senso”, diz Gabriela. Essa característica é fundamental, considerando a proposta de gestão horizontal do coletivo.
A rua: desafio, escola, lugar da efervescência
A influência decisiva do Mamana Foto Coletivo, como ressaltado por todas, é a rua. Nesse âmbito, cada fotógrafa tem um estilo particular: enquanto algumas trazem um viés mais poético, compondo a foto com paisagens e aspectos geométricos do espaço, retratando pessoas ou capturando momentos cotidianos e/ou de espontaneidade, outras fazem um trabalho “mais duro e cru”, expondo contradições e particularidades da rua. Mel define:
Cada uma tem sua linguagem e estética, mas o nosso ponto de encontro e o porquê do Mamana é a rua
“Cada uma tem sua linguagem e estética, mas o nosso ponto de encontro e o porquê do Mamana é a rua. Todo trabalho que a gente produziu ou recebeu foi considerado e publicado porque tinha a ver com a documentação ou ocupação do espaço público. E é claro que cada um tem sua linguagem, mas é importante ter a ver com a rua. A gente tem uma área de atuação que é o fotojornalismo e a fotografia de rua.
Eu comecei a fotografar por causa da rua. É o caminhar. Você sai na rua com sua câmera e registra as coisas que estão acontecendo ali. Você anda na rua prestando atenção mesmo, fotografando, olhando as personagens que vão e vêm, é como um grande teatro, que te inspira. E tem o desafio de ser mais um em meio à multidão com uma câmera, o desafio de como abordar os passantes, de abordar ou não. E, nos encontros, muitas vezes você trava conversas durante horas, fica sabendo da vida da pessoa e faz o retrato dela. Acho que a rua é esse lugar, seja em São Paulo, seja em Brasília, onde a cultura se manifesta”.
Para Bruna, a “rua tem 100% de influência” no seu trabalho, “a rua é a base”. Já Gabriela diz:
“Eu também comecei a fotografar por causa da rua, para documentar a sociedade. Hoje eu não atuo só nesse sentido, faço muito retrato, mas o meu pé está sempre lá. Porque tem muita referência que você traz daí – por exemplo, a prática de pensar rápido sobre composição e luz, de agir no momento decisivo. A rua é a melhor escola, você vai ter desde belíssimos retratos de pessoas posadas, espontâneas, com cenário fácil, até situações difíceis, poluídas. Tem tudo para te ensinar a ser uma fotógrafa com olhar afiado. Fora a importância social da rua: é lá onde toda a efervescência acontece. Se você quer fazer parte da história de uma mudança, tem várias formas de se construir a narrativa, mas a rua é sempre a primeira camada”.
Fora a importância social da rua: é lá onde toda a efervescência acontece. Se você quer fazer parte da história de uma mudança, tem várias formas de se construir a narrativa, mas a rua é sempre a primeira camada
Com uma visão muito sensível para o cenário da fotografia atual, todas as integrantes veem com bons olhos o avanço da tecnologia. Segundo elas, com a popularização das câmeras fotográficas nos celulares, muitas pessoas têm experimentado e capturado fotos incríveis. Outro ponto interessante observado por elas é que o aumento do número de pessoas com esses equipamentos não implica maior competição entre fotógrafos, mas sim democratização. Segundo Gabriela:
“A tecnologia sempre avança e isso é democratização, não competição. Se você pensar o contexto da fotografia de décadas atrás, eram só pessoas de elite que tinham o direito de ser fotógrafas. Então, na verdade, é uma forma de democratizar a fotografia, de contar mais histórias. Hoje, na periferia, a gente tem registros genuínos, fotojornalismo, cobrindo desde festas até cenas do cotidiano, porque a pessoa pode ser fotógrafa com o celular. Se você é conservador, vai achar ruim, mas eu sinceramente acho lindo. É claro que existe muita selfie, mas tem tantas novas histórias, de pessoas com acesso, que podem escoar suas fotos, que não precisam fazer parte de um veículo de comunicação para se expressar.
Pessoas que nem pensavam em fotografia hoje pensam em ser fotógrafas. Porque é isto: a fotografia era tão inatingível porque o preço da câmera era inatingível; mas agora não. Hoje você vê trabalhos lindos feitos com celular, a pessoa sabe fazer uma luz ou um retrato com o que tem na mão e acaba descobrindo a fotografia em si por conta do acesso à câmera. E isso contribui artisticamente para todos nós, porque há a divulgação de uma linguagem. De repente há contribuições de milhares de pessoas diferentes e para você, como artista, isso é muito enriquecedor. A gente reflete: ‘Nunca pensei em uma luz assim, nem nessa história’. É um boom também na nossa mente ter acesso a essas outras narrativas”.
A internet contribui também para o fotojornalismo, argumenta Mel:
“É o debate sobre imprensa livre, você ter um celular, estar num lugar e registrar o que está acontecendo. Tem o exemplo recente de Brumadinho (MG). Você entra no Instagram e vai acompanhando os stories de uma galera que está lá produzindo notícia de forma independente e trazendo outros olhares”.
São essas, entre outras, as referências e discussões que compõem o Mamana Foto Coletivo. Essas fotógrafas capturam momentos históricos, mas também cenas comuns do cotidiano, sempre com uma sensibilidade e uma poética muito importantes e particulares. No universo da fotografia há sempre uma intenção no enquadramento e um propósito no registro deste ou daquele instante. Em muitos trabalhos do Mamana, não são necessárias legendas para compreender que um contexto político está sendo narrado e documentado, também não é preciso ser especialista para enxergar a beleza das fotografias. A questão sobre a fotografia de rua não diz respeito apenas ao que ela mostra, mas como ela mostra. Isso tudo, é claro, perpassa o Mamanas. No entanto, o trabalho delas ainda vai além, pois reunir mulheres para fortalecer e trocar experiências femininas no mundo da fotografia é igualmente importante. A partir disso tudo, podemos perceber a potência da fotografia como linguagem artística e também o valor da organização coletiva de mulheres fotógrafas.