Por Felipe Lindoso

A internacionalização da literatura brasileira enfrenta uma série de dificuldades. Algumas são estruturais, outras são derivadas de problemas relacionados a políticas públicas (ou à ausência delas) para que esse processo ocorra de modo mais eficaz.

Vejamos, abaixo, algumas dessas dificuldades.

1 – Idioma da escrita e centralidade dos autores

Existe um campo farto de discussões sobre a existência de uma literatura mundial, a chamada República Mundial das Letras. Na formulação original, que veio do Iluminismo, o diálogo entre escritores por meio de suas obras comporia esse mundo da inteligência, no qual a filosofia e a literatura teriam papel primordial. Hoje, essa República Mundial das Letras é um campo de disputas em torno do que se pode chamar de capital literário. O que se supunha ser uma circulação livre, internacional, das ideias, na verdade é uma disputa que parte de “posições de força”, que incluem o idioma original do trabalho de cada escritor.

Por isso mesmo, analisar a posição do idioma português nesse contexto é uma das condicionantes para que se compreenda como a literatura produzida nesse idioma – principalmente em Portugal e no Brasil, e, a partir dos anos 1970, nas ex-colônias lusitanas na África – tem uma posição fraca no contexto da República Mundial das Letras.

Um dos poucos indicadores para verificar essa questão é o Index Translationum, um banco de dados que compila informações sobre traduções de todos os países membros da Unesco. Melhor dizendo, compilava. O Index foi criado em 1932, ainda pela Liga das Nações. Herdado pela Unesco, foi interrompido em 2012, a pretexto de dificuldades econômicas da organização internacional. O banco de dados era composto de informações enviadas pelas bibliotecas nacionais dos países membros, encarregados da compilação das respectivas bibliografias nacionais. Não era completo, pois muitas vezes as bibliotecas deixavam de fornecer tais informações. A própria Biblioteca Nacional do Brasil atrasava sistematicamente o envio. Era, no entanto, a fonte de informações mais abrangente disponível. A partir de 1979, os dados foram digitalizados e sua compilação até 2012 pode ser vista aqui.

Uma primeira tabela extraída do Index mostra o idioma de origem das traduções compiladas:

 

 

Idiomas de origem

 

1

Inglês

1.265.835

2

Francês

225.996

3

Alemão

208.178

4

Russo

103.618

5

Italiano

69.549

6

Espanhol

54.576

7

Sueco

39.980

8

Japonês

29.246

9

Dinamarquês

21.251

10

Latim

19.967

11

Holandês

19.667

12

Grego antigo (até 1453)

18.073

13

Tcheco

17.159

14

Polonês

14.661

15

Norueguês

14.276

16

Chinês

14.070

17

Árabe

12.410

18

Português

11.581

19

Húngaro

11.297

20

Hebreu

10.279

Quadro completo disponível aqui.

Observando os dados, constatamos algumas evidências: a) predominância esmagadora do inglês como o idioma de origem das traduções, seguido de longe pelo francês, o alemão e o russo; b) o português está na 18ª posição, logo abaixo do árabe; c) idiomas de países com populações muito menores, como os nórdicos (sueco, dinamarquês e norueguês), os da Europa Oriental (tcheco) etc., são idiomas originais de mais traduções que o português. Até línguas mortas (latim e grego antigo) são mais traduzidas que a “última flor do Lácio”.

Nesta segunda tabela, temos uma lista com os dez primeiros idiomas-alvo, aqueles para os quais são realizadas mais traduções:

 


Top 10 idiomas-alvo

   

1

Alemão

301.934

2

Francês

240.044

3

Espanhol

228.558

4

Inglês

164.505

5

Japonês

130.649

6

Holandês

111.270

7

Russo

100.806

8

Português

78.905

9

Polonês

76.706

10

Sueco

7.120

Quadro completo disponível aqui.

Esses dados revelam, de certo modo, o nível de “internacionalização” na absorção da cultura mundial pelos falantes dos diferentes idiomas. Note-se, no caso, que o inglês vale para vários países (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul), além de ser, como atual língua franca, habitualmente lido pelas elites cultas de dezenas de outros países, principalmente em publicações técnico-científicas.

Ainda mais interessante é a tabela que mostra o número de traduções por países, em que esse nível de internacionalização cultural fica mais evidente:

 


Top 20 países

 

1

Alemanha

269.724

2

Espanha

232.853

3

França

198.574

4

Japão

130.496

5

URSS (até 1991)

92.734

6

Holanda

90.560

7

Polônia

77.716

8

Suécia

73.230

9

Dinamarca

70.607

10

República Popular da China

67.304

11

República Tcheca

62.480

12

Federação Russa

58.491

13

Hungria

56.868

14

Itália

54.072

15

EUA

52.515

16

Finlândia

51.710

17

Brasil

50.183

18

Noruega

46.314

19

Reino Unido

42.647

20

Grécia

31.486

Quadro completo disponível aqui.

Estados Unidos e Reino Unido, os dois maiores fornecedores de traduções (somados, 95.162), publicam juntos apenas pouco mais que a Holanda. Mas é importante notar que, se há uma concentração na origem, há uma grande dispersão no destino. Isso confirma a hipótese do predomínio da produção em inglês no mercado internacional.

A tabela inclui todos os tipos de traduções. A circulação da literatura técnico-científica é importantíssima. E, se é verdade que a maioria dos cientistas lê ao menos em inglês, não se pode dizer que os dos Estados Unidos leem em outros idiomas. Por isso, o conhecimento produzido no resto do mundo tem que ser traduzido para ser acessado pelos monolíngues de lá.

Nesta última tabela são listados nove autores que escrevem em português e o número de traduções de suas obras:

 

1

Paulo Coelho

1.077

2

José Saramago

522

3

Jorge Amado

420

4

Fernando Pessoa

371

5

Leonardo Boff

301

6

António Lobo Antunes

189

7

José Maria Eça de Queirós

186

8

José Mauro de Vasconcelos

115

9

Clarice Lispector

112

Os 50 autores mais traduzidos no mundo podem ser consultados no Index. Nenhum escreveu originalmente em português. Escrevendo originalmente em espanhol, há apenas Gabriel García Márquez, que aparece no 48º lugar.

Enquanto nosso mago tem 1.077 traduções registradas, a autora mais traduzida de língua inglesa (Agatha Christie) marcou 7.216 traduções. Note-se que Paulo Coelho só começou a ser traduzido em meados da década de 1980. Machado de Assis, por sua vez, registra apenas 99 traduções de 1979 a 2012.

Dizer, portanto, que nossos escritores entram nessa luta a partir de uma posição extremamente frágil é eufemismo. E cada país consegue resultados diferentes para garantir os “créditos” para seus autores.

A importância dos autores, seu crédito no mercado internacional de traduções, é extremamente desigual no que diz respeito ao prestígio crítico que usufruem em seus países de origem. Como sabemos, há muita gente escandalizada com a posição de Paulo Coelho e de José Mauro de Vasconcelos, assim como injuriada pela ausência de outros autores.

Certamente podemos ficar felizes pelos grandes clássicos do idioma português que estão na lista, e por Jorge Amado e Clarice Lispector. A presença de Leonardo Boff abre outra pista para que se entenda essa distribuição de créditos, ou seja, a valorização de escritores: depende também do segmento para o qual escrevem. Astrid Lindgren é autora de livros para jovens. Na lista dos 50 autores mais traduzidos, encontramos Barbara Cartland e Danielle Steel, mas também Lenin, Marx, Tolstói, Dostoiévski. Enfim, um prato cheio para todos os gostos e para qualquer tipo de análise.

Assim, se determinados autores são centrais nessa distribuição tão desigual de créditos da República Mundial das Letras, é sempre bom lembrar que as forças que condicionam essa presença não são facilmente domáveis, ou detectáveis.

 

2 – A presença de autores que escrevem em português no mercado internacional

Um dos fatores que contribuem de modo decisivo para que autores que escrevem em idiomas que disputam com o inglês a presença na República Mundial das Letras é, sem dúvida, a existência de políticas públicas consistentes de apoio à tradução e difusão desses autores.

Como melhorar a presença da literatura brasileira no exterior? O questionário do Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira fornece algumas indicações.

O primeiro questionamento sobre o assunto é se escrever em português é ou não um obstáculo para a difusão da literatura brasileira no exterior.

As respostas são, definitivamente, inconclusivas:

O que importa destacar, entretanto, é que as razões para justificar essas respostas são as mesmas para as três opções:

 

As mesmas justificativas foram usadas por quem, na pergunta anterior, havia respondido “sim”, “não” ou “em termos”. Ou seja, havia uma grande coincidência nas justificativas, como: as traduções eram a solução; outros idiomas, particularmente o espanhol, eram mais divulgados.

Os mapeados, portanto, entendiam que o idioma português sofria de certo tipo de subalternidade ou falta de reconhecimento vis-à-vis a outros idiomas.

Ou, como poderia dizer Pascale Casanova, o português tinha menos valor no capital literário internacional. Esse “valor menor” do idioma é certamente um dos fatores que dificultam a difusão internacional da literatura brasileira.

Entretanto, a principal razão apresentada sobre a importância da tradução é amplamente reiterada nas respostas a outra questão:

De fato, quando se observa o que outros países fazem para oferecer às respectivas literaturas uma oportunidade de entrar no mercado internacional, os programas de tradução assumem sempre um papel de importância. Os programas de apoio às traduções desenvolvidas por instituições como o Institut de France, o Goethe Institut e a Fundación Cervantes têm suas ações concentradas tanto no ensino do idioma quanto no apoio às traduções. Portugal, cujo tamanho e importância econômica no cenário internacional são menores que do Brasil, mantém de forma globalizada o Instituto Camões, com programas de apoio à tradução, além de doutorados e cursos de português em todos os continentes. Portugal chega à sofisticação de apoiar a publicação de autores portugueses no Brasil, além de manter extensos programas de publicações nos países africanos.

Os países escandinavos, e mesmo a Grã-Bretanha, possuem tais programas de apoio à tradução. Recentemente, os países escandinavos tomaram a resolução de incentivar explicitamente um nicho em que seus autores começaram a ter maior destaque, o da literatura policial. Não tiveram pudor de incentivar esse tipo de tradução, que foge de outras mais antigas, como os romances de Lars Gustafsson ou de Selma Lagerlöf, ganhadora do Nobel.

A grande exceção são os Estados Unidos, que agem integralmente a partir da enorme força comercial de sua indústria editorial, ainda que esta seja hoje, em grande medida, controlada por capitais alemães.

O Brasil mantém, desde 1993, o Programa de Apoio à Tradução, dentro da Biblioteca Nacional. No decorrer desse período, já ajudou na tradução de cerca de 900 títulos em diferentes países. Em 2013, a sistemática de análise e liberação dos apoios foi simplificada e agilizada, mas o programa sempre sofre com as variações orçamentárias.

Ainda que seja bem conhecido por agentes literários, a percepção do programa entre os mapeados é muito baixa, como mostram os gráficos a seguir:

 

 

O segundo ponto destacado pelos mapeados é o da criação de uma instituição similar ao Instituto Camões ou ao Instituto Cervantes.

Nesse caso, a situação é bem pior. O Departamento Cultural do Itamaraty não tem uma política proativa de promoção da cultura brasileira. O número de Centros de Estudos Brasileiros (CEBs) foi muito reduzido no governo Fernando Henrique Cardoso. Voltou a crescer nos mandatos do Lula, principalmente na África. Entretanto, o Itamaraty responde principalmente às demandas dos chefes de missão. Se o embaixador gosta de música, pede concertos; se gosta de artes plásticas, pede exposições; se gosta de literatura, empreende ações na área.

Há alguns anos, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) estabeleceu um convênio com a Câmara Brasileira do Livro (CBL) para a criação do programa Brazilian Publishers, com o objetivo de estimular a exportação de livros e direitos autorais de autores brasileiros. O programa tem tido êxito no aumento da participação desses autores em feiras internacionais e também tem convidado agentes literários para visitar alguns festivais e bienais brasileiros (Flip e Bienais de São Paulo e do Rio de Janeiro). É um esforço continuado que já obteve algum sucesso, sendo importante a manutenção dessa presença em feiras e festivais internacionais – o que, aliás, é outra demanda dos mapeados.

O que se observa, entretanto, são iniciativas descontinuadas e sem a profundidade e a ação sistemática necessárias.

Ao constatar o ponto de partida extremamente difícil para promover a divulgação de nossos autores no exterior, fica evidente que seria necessário haver uma ação internacional de promoção cultural integrada, consistente e continuada. E isso não apenas em relação à literatura, claro.

O diagnóstico existe, os problemas são conhecidos. Tudo depende, portanto, da decisão de efetivamente desenvolver uma política cultural consistente e continuada de promoção da cultura e, em especial, da literatura brasileira no exterior. Os esforços realizados têm produzido resultados, mas são muito pequenos diante da magnitude do problema – e de suas consequências, inclusive para o reconhecimento internacional do país.

 

Felipe Lindoso é antropólogo, jornalista, tradutor e editor. Foi consultor do Cerlalc (Centro Regional de Fomento ao Livro na América Latina e no Caribe) e atualmente se dedica ao desenvolvimento de projetos culturais, especialmente na área de literatura. É autor do livro O Brasil Pode Ser um País de Leitores? e consultor do Conexões Itaú Cultural. Mantém ainda o blog www.oxisdoproblema.com.br, onde analisa questões do mercado editorial brasileiro e internacional.

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