Lino Arruda é um dos convidados da terceira edição da Banca de Quadrinistas e expõe seu trabalho no evento nos dias 15 e 16 de setembro.
Organiza Fracassando: Edições Precárias, projeto autônomo de produção, arquivamento, tradução e distribuição de zines com foco em autorias lésbicas, bissexuais e travesti/trans*. Atualmente, além de colaborar em zines de quadrinhos LGBTT, está desenvolvendo o livro de HQs autobiográficas Monstrans: Experimentando Horrormônios, em que relaciona sua transição de gênero com a monstruosidade.
Como aquecimento para a Banca de Quadrinistas, os convidados escolheram um de seus trabalhos para publicação no site e comentaram a escolha. Lino Arruda enviou a história Um Homem pra Chamar de Meu. Confira:
Por que você escolheu essa história?
No processo de seleção achei importante escolher uma historinha mais “acessível” – que, apesar de voltada para a comunidade trans*, não comunica hermética e exclusivamente dentro desse universo. Por exemplo, a HQ Um Homem pra Chamar de Meu tem poucas piadas internas e vocabulários específicos. Às vezes, outros olhares requerem uma série de explicações sobre sexualidade e/ou transição de gênero das personagens, que são recursos aos quais não atento, já que meus quadrinhos normalmente circulam num universo específico. Acho que essa história pode fazer sentido para um público expandido, e esse foi um dos critérios da seleção.
Essa é uma história autobiográfica que, apesar de ser ficcionalizada, narra fatos que realmente aconteceram três anos atrás, quando me mudei para Florianópolis. É um dos quadrinhos de que mais gosto, porque oferece uma alternativa à narrativa clássica de transição de gênero: nela apresento uma transmasculinidade que inusitadamente se aproxima do “universo feminino” e abraça a ambiguidade, desviando, assim, das retóricas associadas ao discurso biomédico (“Nasci no corpo errado”, “Odeio meu corpo”, “Desejo uma masculinidade que me incorpore nos papéis sociais de gênero” etc.). Nessa historinha, assim como em muitos dos meus quadrinhos, opera também uma inversão de perspectivas. Utilizando a transição de gênero como laboratório antropológico, a personagem se infiltra no mundo cis-heteronormativo e olha com estranhamento para a cultura hegemônica, exagerando e ridicularizando-a.
Sou sensível às representações que se centram na violência e na marginalização da população travesti/trans* e observo que há uma espetacularização desse tipo de figuração nas produções mainstream. Gosto dessa historinha porque ela traz alguns elementos marginalizadores (como a rejeição da família e dos amigos, a negação de uma masculinidade mais hegemônica e os repetidos momentos de ininteligibilidade) e aponta a solidão estrutural que muitas pessoas travesti/trans* experienciam, mas oferece uma elaboração fugidia, que não é necessariamente “melhor” nem “otimista”, mas um ponto de vista dissidente de olhar e habitar o mundo. Esta é a função do humor na minha vida e no meu trabalho: criar esses pontos de fuga.
Como foi o processo de criação dessa história?
A maioria das histórias que ilustro são autobiográficas ou situações experienciadas por amigas e amigos LGBTT. Ou seja, a base das historinhas é criada a partir de situações – geralmente desagradáveis – que acontecem no nosso cotidiano, mas a forma de narrar esses ocorridos é a incisão crítica que fazemos, ou seja, a maneira como elaboramos esses episódios e os reinventamos a partir da nossa posição. Uma das funções dos zines nos quais colaboro é a disseminação da cultura imaterial lésbica, bissexual e trans*, por isso os quadrinhos abarcam desde piadas, brincadeiras e histórias até receitas de comida, cartas e poesias, entre outras coisas.
A historinha Um Homem pra Chamar de Meu foi desenhada em 2015, assim que me estabilizei depois de passar por tempos difíceis. O processo de produção dela inclui estar atento a esses momentos de interação em que eu não tenho o menor controle de como serei lido socialmente: às vezes enxergam em mim uma sapatão, um viado, um adolescente... Depende do ângulo, do contexto e do tipo de interação. Lembro de estar tão exausto quando contratei o carreto que achei mais fácil ser responsivo à identidade que o motorista projetou em mim: ele me viu como um menino que havia acabado de entrar na faculdade – quando, na verdade, eu estava começando o doutorado –, assumiu uma postura fraternal e me engajou numa interação tipicamente masculina. Foi uma das minhas primeiras submersões no mundo dos homens, e me lembro de interagir como se estivesse assistindo à televisão: por dentro dava risada, ao mesmo tempo que tentava corresponder ao personagem, temendo alguma reação transfóbica ou homofóbica. Logo na sequência, a interação com o proprietário da casa foi mais um momento em que abdiquei da minha identidade e fiquei observando o desenrolar da história. Claro que com o passar do tempo ele se deu conta de que eu era “a inquilina”, e dividimos outros momentos constrangedores, que renderam novas historinhas.
Outra parte essencial para construir as HQs é o processo de contá-las para as/os amigas/os. Sempre anoto, na minha mente ou num papel, as coisas que acontecem, às vezes inclusive enquanto estão acontecendo, para depois lembrar de contar. Porque é a partir dessa contação e desse intercâmbio com as pessoas “de dentro” que a minha perspectiva se estabelece e vamos elaborando a “piada”, tirando sarro. Desde muito cedo tenho o hábito de contar coisas terríveis dando risada, e acho que isso tem uma função. Eu não faço um roteiro, não planejo os desenhos, não sei medir a página, não defino o formato com antecedência, e acabo frequentemente me arrependendo e sendo pouco eficiente. O processo de produção acaba sendo bem caótico e menos racional do que intuitivo, porque vou desenhando a cena que tenho mais vontade de fazer, ao invés de começar pelo início, e isso vai reorientando a ordem da história e alterando o roteiro.
Apesar de ter me formado em artes visuais, nunca me interessei pelo universo dos quadrinhos. Comecei a fazer quadrinhos em 2011, devido à necessidade que sentia de contar essas histórias que não apareciam em lugar nenhum. Principalmente quando era lésbica e estava muito imersa no universo feminista, reuni diversas histórias e piadas incríveis e sentia uma urgência de materializá-las e fazê-las circular entre as minhas amigas, para que não se perdessem. Então, como o quadrinho pode ser uma técnica relativamente simples, que requer somente uma pessoa, recursos e habilidades que eu tinha e pouco material, fui inventando as técnicas e o processo através de tentativa e erro. Era um projeto pouco ambicioso e voltado para um grupo específico, então o zine foi o formato ideal, já que tem grande circulação em uma comunidade fechada e não requer grandes pretensões artísticas. E, como muitas vezes o resultado estético era tosco, acabei acolhendo a precariedade dessa mídia e incorporando seus fracassos.