por Encontro com Espectadores – Beth Néspoli

 

Muitas são as possíveis definições de arte. Em uma delas, poderíamos dizer que é uma forma cujo ponto de partida são as inquietações de um artista, ou de um coletivo deles, moldada com matéria-prima diversificada e algum grau de intencionalidade no que diz respeito ao desejo de afetar a percepção dos receptores. Estes, por sua vez, investem na fruição das obras as suas próprias indagações em conexão com o tempo e o território vividos.  

A crença no dinamismo desse processo de interação, que perdura e segue sendo alterado mesmo após cessar a relação direta com a arte, moveu os editores do site Teatrojornal – Leituras de Cena a criar o Encontro com Espectadores.

Desde a primeira edição, em 2016, os idealizadores dessa ação apostam na possibilidade de propiciar ao espectador ir além do “gostei ou não gostei”, por meio da ampliação do conhecimento sobre os elementos de composição do espetáculo e os princípios éticos e estéticos que os articulam. E, do ponto de vista da criação, a escuta de comentários e/ou perguntas permite aos artistas aquilatar as efetivas reverberações provocadas pela obra. O estreitamento desse vínculo crítico-afetivo no circuito da arte, espera-se, aprimora também a vida social. 

Apoiado desde 2018 pelo instituto Itaú Cultural, o encontro realizou sua 34ª edição no último domingo de outubro (27), e nela a atriz Lucia Romano e a bailarina e diretora de movimento Lu Favoreto trocaram ideias com os espectadores presentes, com mediação do crítico Valmir Santos, sobre a montagem Os Um e os Outros, cocriação da Cia. Livre de Teatro e da Cia. Oito Nova Dança.

Encontro com Espectadores |debateu a peça Os Um e os Outros (imagem: Ophelia)

Romano e Favoreto exibiram fragmentos de uma gravação em vídeo do espetáculo e, a partir das cenas selecionadas, falaram sobre as dúvidas e as decisões no processo de criação, como a escolha da peça Os Horácios e os Curiácios, de Bertolt Brecht, como base da dramaturgia. Também comentaram a relação estabelecida com os integrantes dos povos originários da etnia Guarani M’Bya que vivem na Terra Indígena Tenondé-Porã – distrito de Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo – e participam do espetáculo.

Na peça brechtiana, a guerra entre dois grupos desiguais em armamento e tecnologia resulta na vitória do (aparentemente) mais frágil, graças à estratégia adotada de esquivar-se do confronto direto num primeiro momento. Tal disputa é reelaborada em cena como contraponto entre os povos originários das terras brasileiras e os invasores não indígenas desde a colonização, ou juruás, como são chamados em língua tupi os povos não pertencentes às etnias indígenas.

Sobre a presença muitas vezes ignorada desses povos em plena capital paulistana, Lucia Romano comentou: “Os Guarani em cena revelam aspectos da nossa branquitude que precisam ser (re)pensados” – ponto de vista que promove uma inversão no que diz respeito à invisibilidade; afinal, o que exatamente passamos a perceber quando finalmente conseguimos abrir os olhos para alguém que é outro e lidar com a alteridade cultural? Essa parece ser a provocação que nos fazem a atriz e, claro, o espetáculo.

Na conversa, a dupla falou sobre recursos que afetam a recepção, muitas vezes imperceptíveis para o espectador, como a redução do espaço cênico quando ocupado por homens e mulheres urbanos pressionados pelo relógio, em contraste com a amplitude de movimentos quando em conexão com a visão de mundo guarani. Lu Favoreto falou ainda do desmonte da espetacularização em favor do rito como investimento consciente na criação desse trabalho teatral.

Provocadas por uma pergunta da arquiteta Marina Leonardi, atriz e diretora de movimento discorreram sobre o processo de aproximação com os povos originários e, em especial, com os integrantes do espetáculo, escolhidos não por elas, mas por lideranças indígenas. Romano e Favoreto enfatizaram o tempo investido nessa relação, uma vez que ambas as companhias, Livre e Oito Nova Dança, já haviam criado trabalhos sobre a cultura ameríndia ao longo da sua trajetória. E, em 2012, realizaram uma primeira parceria nesse campo, que resultou no espetáculo Xapiri Xapiripê, Lá Onde a Gente Dançava sobre Espelhos.

Como ocorre em todas as edições do Encontro com Espectadores, a conversa em torno de Os Um e os Outros foi gravada em áudio e será transcrita e publicada no site Teatrojornal. Assim, quem não pôde acompanhá-la presencialmente terá a oportunidade de conferir os diálogos na forma escrita.

No próximo encontro, que ocorrerá no último domingo de novembro, dia 24, a atriz Denise Fraga e o diretor Luiz Villaça estarão presentes para falar do solo Eu de Você, numa conversa mediada pela autora deste texto.

A 35ª edição, de certa forma, oferecerá a possibilidade de completar um ciclo, uma vez que o solo Eu de Você é composto de histórias colhidas entre pessoas não envolvidas na criação artística, ou seja, narrativas de gente que, na arte teatral, ocupa o lugar de espectador (um papel nada passivo, importante frisar).

Na gênese do solo está um exercício de escuta e reelaboração que Denise Fraga vem praticando há muito, sempre em parceria com o diretor e cineasta Luiz Villaça, desde a criação, no ano 2000, do quadro Retratos Falados, exibido semanalmente durante nove anos na TV Globo.

Explicitado no trabalho da atriz, o desejo de dialogar com o público é também evidente no modo como ela o recebe pessoalmente no saguão do teatro, atitude que certamente vai propiciar uma conversa vibrante e produtiva na próxima edição do Encontro com Espectadores. O solo Eu de Você pode ser visto no Teatro Vivo, às sextas (20h), aos sábados (21h) e aos domingos (19h), até 15 de dezembro.

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