Por Daniel Munduruku

A escrita é uma novidade para os povos indígenas brasileiros. Se lembrarmos que as primeiras escolas legitimamente sediadas em aldeias só foram instaladas após a aprovação da nova Constituição brasileira, vemos um dos principais motivos por que isso é assim: os povos indígenas sempre foram considerados em transição, ou seja, estiveram numa posição de inferioridade com relação aos demais brasileiros.

Até 1988 nossa gente era alvo de políticas públicas cujo principal objetivo era fazer com que fôssemos integrados à sociedade brasileira. Por essa ótica, ganharíamos o status de “civilizados” tão logo ingressássemos no mercado de trabalho, oriundos de um ensino técnico que nos daria os instrumentais para nos tornarmos mão de obra barata. Era a escola profissionalizante pela qual todos os indígenas tinham de passar para poder ter direito à sua carteira de trabalho e a uma identidade nacional.

Isso se iniciou nos anos finais da década de 1960. O milagre brasileiro exigia que todos nós fôssemos à escola. Era uma medida necessária para abrir as portas para a exploração mineral, a colonização da Amazônia e a expropriação territorial, defendidas como urgentes e necessárias para construir o Brasil do futuro. “Este é um país que vai pra frente” era o lema à época. Um lema que escondia todas as crueldades de uma política emancipatória a ferro e fogo. Foi nesse período que o movimento indígena começou. Não como movimento, claro, mas como célula de resistência. Foi quando apareceram as primeiras lideranças indígenas nacionais e se começou a enfrentar o sistema tal como ele se apresentava. Eram pessoas sem instrução escolar, com parcos conhecimentos da língua portuguesa, com dificuldade de se expressarem em sua própria língua, por não serem entendidos, e que não tinham outra arma senão sua palavra e sua dignidade. Foram as sementes de uma transformação que viria a acontecer.

Quando os anos 1980 chegaram, uma nova leva de lideranças começou a surgir. Já vinham com a experiência da geração anterior, já tinham passado pela escola e queriam algo mais: o ensino superior. Trazidos do seio de suas comunidades, tais jovens estudantes driblaram a vigilância do sistema e se apresentaram à sociedade como líderes de suas comunidades e de seus povos, e organizaram efetivamente – com a ajuda da sociedade civil brasileira – o movimento político que traria para o debate a presença indígena em sua diversidade cultural, linguística e social. Esse movimento mobilizaria parte considerável do povo brasileiro para inscrever na Constituição Federal dois capítulos cruciais para tirar os povos indígenas brasileiros do ostracismo histórico a que foram legados. Nesse momento, a escrita passou, efetivamente, a fazer parte da cultura oral de nossa gente originária.

Pode até parecer contraditória tal afirmação, mas aquele momento que antecedeu 1988 foi uma ponte para unir o passado e o presente. Os indígenas, que sempre foram presentes na história, eram tidos como ausentes e, agora que quebravam o silêncio, entravam pela mesma história pela porta da frente. Pela primeira vez o povo brasileiro, por meio de seus representantes legais, dizia que os indígenas não estavam mais de passagem, numa linha evolutiva de humanidade. O povo disse: eles são tão brasileiros quanto todos os outros e sua diversidade não é um empecilho para essa convivência nacional. Cabe ao Estado brasileiro oferecer todas as condições para que mantenham suas tradições, seus costumes, suas línguas, seus rituais e seus territórios.

Essa foi, certamente, a novidade que a Constituição trouxe. Trouxe também os embates políticos que adviriam daí; trouxe a necessidade de pensar políticas específicas para as diferentes regiões brasileiras; a luta pela demarcação das terras indígenas; a discussão da educação diferenciada e sobre a escola que precisa ser inventada fora da caixa da ciência ocidental; sobre o atendimento à saúde também distinto e que levasse em consideração os saberes ancestrais. Enfim, um novo paradigma, possibilidade de autonomia, de construção de novos horizontes para os povos indígenas brasileiros.

Fiz esse preâmbulo todo para explicar por que a escrita é algo muito recente para os povos indígenas brasileiros. Ela é uma conquista que vem sendo realizada gradualmente por meio da ocupação de espaços na sociedade brasileira. Esses variados espaços têm testemunhado uma crescente e qualificada presença indígena. Tem sido assim na academia, nas artes, na mídia e na literatura.

As universidades brasileiras vêm sendo cada vez mais frequentadas por estudantes originários. O número de graduandos é cada vez maior, mas também os pós-graduandos têm conquistado um riquíssimo espaço de debate. Há mais doutores indígenas em uma década do que em todos os 500 anos anteriores, e alguns já ocupam uma cadeira em importantes universidades brasileiras.

A música tem sido outro importante campo alcançado por artistas indígenas. Em diferentes estilos musicais, grupos e artistas em carreira solo têm atuado para dar voz às suas demandas – o que se delineia num cenário artístico muito concorrido. O mesmo se diga dos atores de teatro, cinema e televisão, que, a despeito da subutilização a que estão sujeitos, representam um volume considerável de novos sujeitos da arte. Nas mídias sociais vemos uma evolução acontecendo, embora mais timidamente. Apesar de boa parte dos jovens indígenas ter acesso a elas, seu uso de forma mais qualificada ainda está aquém das possibilidades e dos talentos existentes. Exceção honrosa é o crescimento virtuoso da Rádio Yandê, pioneira no uso racional da mídia radiofônica no Brasil pelos povos originários.

É aqui que se inscreve a literatura indígena. Longe de estar ocupando um espaço largo na memória nacional, ainda tateia procurando seu lugar de pertencimento no cenário literário brasileiro. Isso acontece especialmente porque o lugar da escrita não costuma permitir que aventureiros ali se instalem, diferentemente de outras artes. Não, não quero depreciar o que cada arte produz, mas dizer que a literatura, para ser reconhecida como tal, passa por um crivo crítico que vai além do gosto popular. Até muito pouco tempo atrás era comum pessoas dizerem que não existia literatura indígena porque os nativos não dominavam a escrita e seu instrumento preferencial era a oralidade. Alguns especialistas chegavam a dizer que um indivíduo indígena, ao escrever, deixava de ser indígena, porque isso é incompatível com sua tradição oral. Ainda hoje pesquisadores jovens que tentam estudar essa literatura em seu mestrado ou doutorado encontram forte resistência entre os orientadores, por estes não aceitarem a existência de tal literatura como objeto de pesquisa. Menos ainda quando a escrita da qual aqui se fala é a infantojuvenil, segmento pouco considerado pela dita literatura canônica e que tem sido a porta de entrada de escritores indígenas na sociedade brasileira.

De qualquer modo, há uma literatura escrita por indígenas; há uma identidade nessa produção literária; há uma demanda crescente por esse tipo de escrita. Isso é um fato notado a partir dos últimos 20 anos. É uma produção voltada para crianças e jovens, sim; comprometida com a conscientização da sociedade brasileira sobre os valores que os povos originários carregam consigo apesar dos cinco séculos de colonização.

Qual é o tamanho dessa literatura? É bem difícil precisar dados concretamente, mas podemos afirmar que há cerca de 40 autores autodenominados indígenas que estão produzindo material literário com alguma regularidade. Pertencem a pelo menos 20 povos diferentes e são oriundos de quase todas as regiões brasileiras. Estima-se algo em torno de 120 títulos, em sua maioria voltados para o público infantil e juvenil, mas há também literatura adulta, acadêmica, paradidática, história em quadrinhos e até audiolivros. Alguns publicam por grandes selos editoriais, outros fazem autopublicação; há os que conseguem publicar por meio de programas universitários ou grupos de pesquisa. As organizações não governamentais também são responsáveis pela edição e pela publicação de muitos títulos, que por vezes são distribuídos gratuitamente por aldeias, escolas e universidades.

Não podemos esquecer que o Ministério da Educação sempre teve importante papel na produção de material didático e paradidático a ser usado nas escolas das aldeias. Enfim, se pensarmos nessa produção como um todo, veremos que autores indígenas estão escrevendo nos mais variados estilos, seja para expressar suas próprias angústias, seja para educar, divertir, denunciar ou apenas se autoafirmar como indivíduos numa sociedade que os invisibilizou e, em alguns casos, os inviabilizou como cidadãos.

A meu ver, há algumas contradições muito presentes na sociedade brasileira que levarão algum tempo para ser resolvidas, o que passa pela aceitação do modus vivendi das populações indígenas. De alguma forma isso está presente não apenas na discussão sobre se o indígena pode ou não escrever com a mesma qualidade dos “letrados” brasileiros, mas também na própria discussão sobre a identidade nacional e sobre se esses “selvagens” têm o direito de fazer parte dela sem deixar de ser o que são.

Parte dessa ruptura está sendo quebrada pela significativa participação de representantes indígenas nos vários eventos literários no Brasil e no exterior e também pela crescente atenção dada ao fenômeno da literatura indígena, tema que vem sendo discutido nos vários grupos de pesquisa que surgiram no país nos últimos anos. Tudo isso nos leva a crer na quebra de um paradigma que estava consolidado na própria academia, pois ao longo dos últimos 20 anos vários indígenas receberam reconhecimentos da qualidade literária de seus escritos, como o Prêmio Jabuti e o prêmio da Academia Brasileira de Letras; houve a tradução de obras para diversos idiomas; a criação de um encontro de escritores e artistas indígenas; o lançamento de concursos literários exclusivos para esses povos e de outro para educadores que trabalham a temática indígena em sala de aula a partir da leitura de obras escritas por indígenas; a realização de saraus literários e seminários de literatura indígena; a participação em feiras de livros no Brasil e no exterior. Enfim, fez-se o caminho. Agora, caminha-se sobre ele. O debate é válido para alimentar a compreensão do que está sendo realizado.

Nesse sentido, é relevante dizer que o Conexões Itaú Cultural de 2017 apresentou um importante ponto nessa discussão sobre a valorização da produção literária indígena. Por quê? Porque trouxe um olhar interessante sobre a produção de literatura brasileira no exterior. O Brasil é lido fora de nossas fronteiras. Qual Brasil é lido fora de nossas fronteiras? Em se tratando dos povos indígenas, vemos que ainda é aquele contado por outros. O olhar estrangeiro sobre o país continua sendo um olhar estrangeiro. A literatura produzida por indígenas ainda não teve espaço no exterior, e o muito que se fala sobre nossos povos é dito pela pena do não indígena. Penso que isso é fruto da ideia disseminada ao longo da história a respeito de nossa incapacidade de falar por nós mesmos.

Tal situação se reflete nas publicações editoriais: a maioria do que se publica tem a presença de profissionais estrangeiros ou de algum intelectual brasileiro que estudou na Europa ou nos Estados Unidos. Como exemplo, basta citar o famoso livro de Davi Kopenawa, A Queda do Céu – um lindo relato escrito por Bruce Albert, um francês. Há também o livro do líder Almir Suruí, Sauver la Planete, lançado no Salão do Livro de Paris em 2015. Escrito por Almir? Não, por Corine Sombrun, jornalista francesa. Eu poderia aumentar essa lista com o nome de importantes intelectuais brasileiros que são sempre publicados no exterior como grandes conhecedores das culturas indígenas. Isso é um fato. Não estou criticando-os por isso, mas apenas justificando que os “bons selvagens” ainda não têm voz para além das fronteiras talvez porque o mundo queira ouvir suas palavras, mas não as ler. Somos o reflexo para fora do que somos em nosso próprio país. Temos um longo caminho a percorrer não apenas como indígenas, mas como brasileiros que somos.

À guisa de conclusão, gostaria de lembrar que participei em várias feiras internacionais. Já estive em Bolonha, na Itália; Bogotá, na Colômbia; Paris, na França; Frankfurt, na Alemanha; e Gotemburgo, na Suécia. A todas elas fui como autor convidado. Em Frankfurt (2013) e Paris (2015), fui vítima de uma questão que me abalou: eu estava na lista de convidados como parte de uma cota que obrigava ter um índio e um negro (Paulo Lins passou pela mesma situação). Isso me pareceu ridículo na ocasião, mas depois, refletindo melhor, vi que fazia mesmo sentido tal consideração. Nas duas feiras minha participação foi totalmente subaproveitada. Eu me senti muito constrangido pelo fato de haver autores brasileiros falando sobre a temática indígena enquanto eu estava na plateia ouvindo. Foi uma sensação ruim que me motivou a pensar que o meu principal trabalho é mesmo dentro do meu país e que não devo entrar no jogo do sistema que quer me usar para vender a mesma imagem que sempre levou para o exterior: subalternidade. Minha literatura não pode ser subalterna. Eu também não.

 

Daniel Munduruku é um escritor indígena brasileiro, autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Tolerância (Unesco). É graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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