George Yúdice é professor titular do Programa de Estudos Latino-americanos e diretor do Departamento de Línguas e Culturas Modernas da Universidade de Miami. É diretor do Miami Observatory on Communication and Creative Industries. É autor, entre outros títulos, de Política Cultural (Gedisa, 2004); A Conveniência da Cultura: Usos da Cultura em uma Era Global (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005); Nuevas tecnologás, músic y experiencia (Gedisa, 2007); e Culturas emergentes en el mundo hispano de Estados Unidos, (Madrid: Fundación Alternativas, 2009). Tem mais de 130 ensaios de estudos culturais e literários. Está no comité editorial de International Journal of Cutlural Policy; Cultural Studies; Found Object; y Topía: Canadian Journal of Cultural Studies.

Cultura e Mercado: um equilíbrio possível?

George Yúdice: A arte pela arte, em si, é uma coisa mais específica. Mas poderíamos falar de práticas culturais endógenas, nas comunidades, ou arte por artistas por uma parte e, por outra, a questão do desenvolvimento econômico, pois hoje em dia as políticas culturais estão procurando em muitos países fomentar e estimular o crescimento econômico por meio da cultura. O que está em jogo é uma possível instrumentalização da cultura e da arte, uma dinâmica que faça com que usuários ou consumidores de arte e cultura se voltem para o consumo. Se esse sistema focar o crescimento econômico em cima da publicidade, o que ocorre no setor privado, chegaríamos a uma cultura de consumo, como acontece na televisão em muitos programas. Isso ocorre também na música popular, não sei se no Brasil, mas certamente em outros lugares, em que a publicidade é inserida, por exemplo, nos videoclipes. O rapper americano Pitbull insere anúncios dentro dos clipes de suas músicas. Ele tem uma música, cujo nome não me lembro no momento, que tem a ver com a transformação dele, de uma vida de malandro para a de um cidadão que trabalhou com música e tem uma boa vida. A letra diz “eu transformei minha vida do negativo para o positivo”. O videoclipe dessa música tem um anúncio publicitário das câmeras da Kodak, baseado nessa ideia de transformar o negativo em positivo. O videoclipe está cheio de produtos, commodities – esse é um modelo. Então o que se procura é pagar a música não com a venda dos discos, mas com essa publicidade que está inserida nela. Esse é um exemplo extremo. Sabemos que o rap começou nos bairros marginais de Nova York, nos nos 1970, e não tinha essa relação com o mercado. Com a entrada de muitos rappers no mercado, se deu na música uma briga cultural interessante. O mercado serviu, nesse momento, para uma disputa de valores em torno da música. O rap acabou ganhando, mas também acabou sendo transformado em cultura instrumentalizada. Esse exemplo é de uma cultura endógena, que tem valores próprios e se transforma em outra coisa. Então a pergunta é: como é possível estabelecer sistemas sustentáveis, que mexem com o mercado? Porque todo mundo tem de ganhar dinheiro pra viver e, para viver, talvez 98% ou 99% dos músicos precisam complementar o que ganham com a música com outro tipo de trabalho. Mas como melhorar esse sistema de mercado para o músico sem cair nessa maneira extrema da instrumentalização econômica da cultura e da arte? É isso que está em jogo. E acho difícil que uma política pública, de governo, possa transformar os costumes que os consumidores vão adquirindo em relação a isso, mas se pode ter uma maior regulamentação da mídia em relação à publicidade. E já existem lugares onde se limita a publicidade e o que a publicidade pode fazer. Então poderia haver, por exemplo, com relação aos videoclipes, como os do Pitbull, a noção de que publicidade é uma coisa e música é outra. Mas eu não tenho muita certeza de que isso funcionaria bem, até porque a intrusão da publicidade na arte já foi uma estratégia estética, nas artes visuais, pensamos em Dali e em Warhol, ou seja, tanto na arte quanto na cultura, qualquer fenômeno pode se converter em arte ou em cultura, então poderia ser um limite muito extremo dizer: “você pode mexer com tudo, menos com publicidade”. Acho que o que se pode fazer é criar sistemas de promoção de outros tipos de arte, às quais a publicidade não apoia. O importante é ter um sistema de apoio.

Pontos de cultura e a diversidade cultural

George Yúdice: Acho muito importante porque esse programa [Pontos de Cultura] pode apoiar uma série de manifestações que sobrevivem, algumas vezes, com dificuldades. Claro, já são existentes, não estão criando uma coisa nova. Então, se existe a pergunta, poderia ser: por que mexer com eles? Deixem que existam, sem intervenção. Mas acho que o grande problema é que a população não conhece a maioria dessas atividades culturais. Isso seria impossível, porque se teria de viajar por todo o Brasil e toda a América Latina para conhecer, porque muito dessas atividades ainda não se encontram na internet, são lugares. Acho que a ideia dos pontos de cultura não é só dar o apoio, que não é muito grande. O mais importante é articular os pontos por meio da internet e colocá-los em contato. Eu sei que existe uma possível iniciativa da Secretaria de Economia Criativa da publicação dos APL, Arranjos Produtivos Locais, que são formas de articulação para melhorar a promoção. Quer dizer que você pode integrar alguém que faz desenho com alguém que faz música ou alguém que faz publicidade, ou som. Você pode articulá-los de uma maneira que os resultados sejam mais produtivos e, provavelmente, mais centrados. A articulação e a promoção propõem muitas coisas: possivelmente, um melhor resultado econômico e, segundo, o conhecimento desses fenômenos. Isso o mercado não produz. O mercado trabalha com uma pequena minoria da oferta cultural: essa que pode atrair publicidade. Então os cidadãos perdem a oportunidade de conhecer a grande oferta cultural do seu próprio país, até mesmo da sua própria cidade – muitas pessoas não sabem o que está acontecendo em outros bairros. Nesse ponto, então, eu acho que a política pública é importante.

Consumo cultural 2.0

George Yúdice: Até agora, o exemplo de oferta de consumo nesse sentido [consumo cultural on-line] são lojas como Amazon ou Mercado Livre, esse tipo de negócio. E existe, por exemplo, para o usuário em geral, uma lei de mercado – isso quer dizer que a pessoa de cultura tem de entender leis de mercado. A lei de mercado é essa: eu quero o que eu quero, quando eu quero, imediatamente e onde eu quero. Eu quero na minha casa, na minha piscina, neste momento. Eu não quero me vestir, entrar no carro, ir para a rua, para uma loja, se eu posso apertar um botão e baixar uma música ou um filme – eu quero isso. E é isso que a internet e essas lojas virtuais tornam possível, além de plataformas de intercâmbio de música, todas fazem isso. E não necessariamente é bom. Por exemplo: a Amazon, que oferece esse serviço, também explora os operários. Isso porque eles têm acho que 15 ou 20 segundos para responder o pedido que chega: se alguém compra uma câmera, eles têm 15 segundos para empacotar tudo e enviar. A empresa impõe um padrão temporal muito explorador, e é isso que possibilita que todos recebam tudo quando quiserem, e isso tem repercussão negativa no emprego. O usuário já está se acostumando com esse tipo de consumo imediato das coisas, o que não é ruim para ele. O uso da internet, mesmo que não para comprar, também para publicar fotografias, textos ou vídeos no Facebook ou Instagram, tudo isso se usa muito mais do que para comprar coisas nas lojas. Isso gera dados do usuário, o que produz renda para as plataformas Google, Facebook ou Instagram. Não se trata de vender uma coisa: são dados. Os dados que se usam para publicidade e outros fins, até mesmo espionagem. Tem tudo isso e, para mim, o problema ainda pior do que converter arte em commodities é esse tipo de controle que se está gerando por meio dos megadados, e a análise dos megadados para construir os perfis dos usuários e, logo, saber mexer com o usuário. Isso é uma coisa que ainda não tem regulamentação e, para mim, deveria ter: o que uma empresa privada está fazendo com as milhas de milhões de usuários? Não estamos falando só de um país, estamos falando de 1.500 milhões de pessoas com acesso à internet. E, cada vez que você aperta uma tecla, gera dados que são usados. Muito pior do que a commoditiezação da arte e da cultura, é isso. Ainda não existe regulamentação, mas acho que começam a surgir movimentos de regulamentação dos megadados e como se usam os megadados.

Uma saída para a propriedade intelectual no século XXI

George Yúdice: Não existe um sistema de direitos autorais no ambiente digital em que a gente vive. O modelo antigo, do século XIX, foi criado para o mundo industrial e nós estamos em um mundo bem distante do industrial. Ainda há indústrias, mas a inovação não é produzida na fabricação, a inovação é a que se está produzindo nas ideias de protótipos etc. E é isso que o usuário quer – usar tudo isso. Estamos numa época em que essa lei do “eu quero hoje” entra em conflito com o sistema de propriedade. É preciso flexibilizar esse sistema e compensar as pessoas que estão trabalhando na internet, não só os que estão embalando coisas que serão enviadas pela Amazon, mas estamos falando das pessoas que estão gerando lucro para as plataformas e precisam ter algum tipo de compensação. A única saída possível, que implicaria uma enorme vontade política, e ainda a articulação de muitos governos, seria algo semelhante a uma convenção da OMC [Organização Mundial de Comércio] ou da OMPI [Organização Mundial da Propriedade Intelectual], mais do que a Unesco, pois ela gera convenções sem “dentes”. É preciso gerar uma convenção da OMC e da OMPI, que seria o que um analista do novo ambiente de gestão, há uns dez anos, chamou de “música como água”. Por que água? Água é um serviço público que pagamos ao Estado, e o sistema funcionaria dessa maneira: do mesmo modo que você paga pela água que consome em casa, pagaria uma taxa para usar a internet e parte disso pagaria os direitos da pessoa que criou e tem direito sobre o que você está usando. Seria uma maneira de diversificar totalmente a distribuição da compensação pelos direitos, sem passar por empresas que ficam com boa parte – e não só empresas, algumas sociedades arrecadadoras, como o Ecad, no Brasil, ficam com muito do dinheiro ou distribuem mal, distribuem segundo o que se toca na rádio e, não, segundo o que se está acessando na internet. Esse outro sistema já está sendo feito, e mal, em plataformas como Spotfy. Você escuta uma música e 0,00...1 vai para o músico. Então você tem de escutar 1 milhão de músicas para gerar uma renda significativa. A recompensa ainda não é muito boa. O Spotfy ainda não é rentável. O problema, além disso, é que os músicos não são bem compensados. Essa fração de centavos é muito pouco. Por exemplo: se 10 mil pessoas escutam sua música, você recebe algo em torno de 10 dólares, o que é uma loucura pois, antes, se 10 mil pessoas comprassem seu single, você poderia receber talvez mil dólares. Essa é a diferença entre o modelo antigo e esses novos entre os quais ainda não existe um bom.Aquele outro modelo – de ter algo como um serviço público de eletricidade ou água em que você paga e, eletronicamente, há uma agência que vai monitorando o que está sendo acessado, e vai pagando os direitos – seria uma possibilidade, mas requereria muita vontade política e colaboração.

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