por William Nunes de Santana

 

Chico Science & Nação Zumbi criaram um marco com o seu primeiro álbum de estúdio, Da Lama ao Caos, de 1994. O disco não apenas projeta o grupo no mercado nacional, mas também apresenta um movimento muito maior, visto até hoje como um dos mais importantes da música brasileira, o manguebeat. Para comemorar esses 25 anos, a jornalista Lorena Calábria lança, pela coleção O Livro do Disco, da Cobogó Editora, Chico Science & Nação Zumbi – Da Lama ao Caos.

Nesta entrevista, a autora explica que seu objetivo sempre foi contar a história além do álbum. Para explorar esse universo, entrevistou cerca de 60 pessoas, buscou relatos ainda desconhecidos e, no fim, também se viu dentro da narrativa.

Lorena realizou cerca de 60 entrevistas durante os quatro anos de desenvolvimento do livro (imagem: Maria Teresa Arruda)

Por que Da Lama ao Caos?

É engraçado porque, quando conheci a coleção O Livro do Disco, da Cobogó Editora, fiquei imaginando sobre quais discos gostaria de escrever, e Da Lama ao Caos foi a primeira opção. Já tem livro, tese e mil matérias sobre ele. Quando fez dez anos – o que é um bom distanciamento –, começou a aparecer nas listas de melhores discos dos anos 1990 e melhores discos brasileiros, ou seja, foi ganhando reconhecimento com o tempo. Desde 1994, quando assisti ao show de lançamento, sempre o considerei um marco. Queria contar que Da Lama ao Caos não é apenas um disco.

Tem uma história meio maluca, mas muito significativa para mim. Em 2010 estava cobrindo o Carnaval de Pernambuco por uma emissora de TV. Era meu segundo ano de cobertura e o primeiro em que fui escalada para Olinda. A transmissão iria acontecer em frente à casa da prefeitura da cidade e as festas começavam cedo, as ruas ficavam tomadas de gente. Era impossível transitar a pé, imagine de carro. Toda a equipe estava em uma van e não conseguíamos passar de jeito nenhum. Em um momento, olhei para o vidro e vi um bando de gente coberta de lama cercando o carro. Eu nunca tinha visto aquilo, não sabia o que era, só depois descobri que era o Bloco Manguebeat, também conhecido como Bloco da Lama, que existe desde 1996.

Alguém bateu no vidro e fez um gesto para falar comigo. Pedi para o motorista abri-lo e, então, vi uma pessoa coberta de lama com os olhos arregalados. Não dava para reconhecer, mas notei que seu rosto era familiar. “Sou eu, o Hamlet!” Ele tinha me atendido em um lugar bem famoso de Olinda, chamado Bodega de Veio, um misto de bar com quitanda. Pedi ajuda para chegar ao local da transmissão e ele conseguiu abrir um caminho para passarmos, parecia cena de filme. Isso ficou na minha cabeça por muito tempo – em qualquer momento que ouvisse uma música do álbum ou alguém falando dele, imediatamente lembrava dessa cena.

Quando existe uma massa sem rosto, que se junta por um motivo, os caminhos se abrem. Essa analogia me norteou para escrever o livro.

Como foi o processo de pesquisa?

Busquei não só os protagonistas – a banda, o empresário e o produtor do disco –, mas sim toda aquela turma que ajudou a formatar a cena manguebeat, que posteriormente virou um movimento. Foram quatro anos trabalhando no livro, pesquisando e escrevendo ao mesmo tempo. Ao todo, fiz cerca de 60 entrevistas. Embora algumas não tenham entrado no livro, ajudaram-me a ter um entendimento maior da cena.

O trabalho não é só das pessoas que gravaram, mas de toda a turma que traçou conceitos muito ricos. E o disco tem isso como alicerce. Se não fosse o movimento manguebeat, não existiria Da Lama ao Caos. Ele é um marco inicial de algo que já vinha acontecendo. Quando terminei, senti que é um livro de pequenas histórias que ajudam a contar uma grande história.

Qual é o ponto central do seu relato?

Dividi o livro em três partes. Primeiramente, falo um pouco da infância e da adolescência do Chico Science, não como uma biografia, mas pinçando elementos que ele captou nessa primeira fase de vida e que podem ser vistos em sua criação. Por exemplo, se ele jogava futebol ou não, isso não importa, mas ele ir ao cinema, ficar perto da cabine de projeção e pegar pedaços de filmes para levar para casa e ficar colando – algo que a irmã dele me contou –, isso mostra o seu processo criativo. O modo como ele fez música tem muito disso, são colagens musicais, tanto de ritmos quanto de pedaços de letras e inspirações.

A segunda parte é um mergulho profundo nas letras. Foi um trabalho meio arqueológico, porque quis ouvir o disco milhares de vezes como se estivesse escutando pela primeira vez. Questionava que som era aquele, o que ele quis dizer com tal letra, de onde surgiu a referência. Cada música me trazia uma história diferente. Nessa parte também faço um exercício de estilo: às vezes, conto a história como se fosse uma ficção baseada em fatos reais e em relatos contados. As histórias são tão fantásticas que parecem invenções.

A terceira parte é sobre o que acontece depois do lançamento do disco. As expectativas, o trabalho de divulgação etc. O disco não foi um sucesso de vendas nem teve uma execução maciça em rádios, mas a banda participou de todos os programas de televisão. Eu termino essa parte, claro, com o triste episódio da morte de Chico, que tinha de ser abordado. É um pouco onde me coloco na história, contando como o conheci em São Paulo. Frequentávamos os mesmos lugares, tínhamos amigos em comum e acabamos fazendo amizade rapidamente. Ele sempre foi muito curioso e a música era o seu assunto favorito.

Chico Science & Nação Zumbi – Da lama ao caos (2019) (imagem: divulgação)

Da Lama ao Caos é um dos álbuns que definem a identidade da década de 1990 na música brasileira. Quais foram as suas percepções ao revisitar não somente essa obra, como todo o movimento manguebeat?

Nessa década houve uma iniciativa das bandas de fazer música com alguns elementos de ritmos brasileiros. Em 1980, ainda era muito calcado nas referências de fora do Brasil, com algumas exceções, como Os Paralamas do Sucesso – que já faziam essa mistura, trazendo até ritmos caribenhos. Na década de 1990, essa experimentação foi mais forte. Raimundos, O Rappa, Planet Hemp... Contudo, nenhuma dessas bandas trouxe muita diversidade musical de ritmos nordestinos. Nós temos uma noção pequena de ritmos nordestinos, não sabemos as diferenças e as nuances. Para quem é leigo e não está acostumado, soava como novidade.

Na música de Chico Science & Nação Zumbi, tinha muitos elementos misturados. Não tem uma música que é maracatu com rap, são elementos misturados a vários outros e que resultam em algo novo. É até difícil definir que som eles faziam. Pela primeira vez naquela década, uma banda conseguia juntar vários gêneros musicais, como hip hop, funk, soul music, rock, música africana e música eletrônica, além de uma diversidade de ritmos nordestinos.

Meu encantamento com o disco foi imediato e aumentou quando vi ao vivo. O show de lançamento, em São Paulo, foi um baque. As potências sonora e expressiva eram absurdas, o jeito que o som chegava até você, a emissão das alfaias é algo sensorial, o baixo pulsante de Alexandre Dengue, as várias guitarras de Lúcio Maia e, principalmente, a performance de Chico – já muito carismática. Ele fazia com o seu corpo e a dança a mesma mescla que fazia com os gêneros musicais. Era um jeito muito forte de se expressar. Visualmente, também era muito interessante e bonito, porque ele já estava assumindo aquela roupa icônica, com chapéu e óculos, que remetia à vestimenta do caboclo de lança do maracatu.

No palco, Chico Science fazia com o seu corpo e a dança a mesma mescla que fazia com os gêneros musicais. Era um jeito muito forte de se expressar.

Fazendo um exercício de imaginação, é possível transportá-lo para os dias atuais?

Da Lama ao Caos ainda é muito atual e potente. As letras têm uma força absurda, pensando no nível da crítica social e no discurso político de afirmação. Esse discurso é contemporâneo. A força do manguebeat é o conceito que ele traz. Mais do que as bandas, são as propostas.

Quando assisti ao filme Bacurau (2019), do diretor Kleber Mendonça Filho, consegui ver nele vários elementos de Da Lama ao Caos. Não que seja uma inspiração direta. No livro, tem uma foto que Kleber tirou quando estava filmando o primeiro clipe da banda bancado pela gravadora. A produção audiovisual de Recife já vinha acontecendo muito antes do movimento, tanto que, quando a Ocupação Chico Science foi realizada, em 2010, no Itaú Cultural, Kleber escreveu um texto dizendo que Da Lama ao Caos é parte de um roteiro cinematográfico de Pernambuco, tamanha a riqueza das imagens oferecidas nas letras. Em Bacurau, consegui fazer o exercício contrário. Há vários elementos ecoando, por exemplo, na força do coletivo, na inteligência do povo oprimido, nas tecnologias que eles usam para sua defesa e em favor da educação. Vejo esses pontos similares entre o filme e o disco. Para a turma do manguebeat, o coletivo cultural também era o mais importante. Fora o Lunga, personagem do ator Silvero Pereira, que é a imagem do cangaço.

Chico Science (imagem: divulgação)

Depois de mais de 20 anos de sua morte, como Chico Science ainda reverbera na produção cultural do Brasil?

É impressionante como sempre tem artistas reverenciando Chico Science, seja explicitamente em suas letras, seja fazendo samplers de suas músicas. Acredito que ele sempre estará presente nos colegas e nos artistas. E o mais interessante é que Da Lama ao Caos acaba inspirando outras pessoas a se expressarem olhando para o seu próprio quintal, sua própria verdade, não querendo ser alguém diferente do que nasceram para ser. Era algo que Chico gostava de dizer.

Outra coisa bacana é este espírito que ele transmitia da diversão levada a sério. Escolha alguma coisa para fazer na qual consiga ser feliz e leve isso a sério, faça com dignidade, tenha um compromisso com a sua arte.

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