A pesquisadora chilena fala sobre cartografias culturais, indicadores e diversidade, apontando os principais desafios desde o início de suas pesquisas e seus trabalhos de campo e avaliando o atual cenário.

María Paulina Soto Labbé é professora, pesquisadora e doutoranda em estudos americanos com uma bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica. Coordenou por oito anos o Departamento de Estudos e Documentação do Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile. É especialista da Unesco em diversidade cultural e membro do Laboratório Latino-Americano de Investigação e Desenvolvimento em Política Cultural, além de pesquisadora associada ao Núcleo de Sociologia de Arte e Práticas Culturais, da Universidade do Chile, e sócia e diretora da empresa Patrimonia Consultores S.A.

OBS: Você esteve envolvida no processo de formatação da cartografia cultural do Chile em 2003. Pode comentar a importância da elaboração dessa cartografia e os impactos dela no cenário nacional chileno?

Labbé: Uma das metas era iniciar um diálogo no interior das comunidades locais, uma reflexão a respeito de suas identidades culturais. Outro avanço foi a diversidade de atividades registradas, que foram de 81 identificadas em 1999 para 210 em 2002, unindo realizadores e gestores culturais que, por várias migrações na segunda metade do século XX, passaram a ser residentes definitivos fora do território nacional. Denominamos esse registro extramuros, simbolicamente, de Região do Reencontro. Partindo do ponto de vista dos conteúdos, capturar os contextos culturais regionais por trás dos dados estatísticos significou um desafio, porque nossas estadias nos territórios eram limitadas, o que fazia com que o diálogo e a conversa inaugurados com seus habitantes e especialistas sempre tivessem o sabor de inconclusos.

Uma fonte inesgotável e inestimável de completude sensível e profunda foram os relatos literários e a poesia local. Suas descrições e seus significados elucidam tempos e espaços vividos, conversas remotas e vigentes, que frequentemente não são apreendidas pelo viés dos diagnósticos especializados e acadêmicos. Na cartografia cultural, a criação literária concluiu o que as ciências não permitiram capturar. Finalmente, diria que tudo o que aprendemos nesse trabalho megalomaníaco é a base dos estudos posteriores: caracterização dos trabalhadores do setor cultural; pesquisas sobre consumo e uso do tempo livre; pesquisas sobre demanda de espetáculos públicos não esportivos e a Conta-Satélite da Cultura. Hoje em dia, os pesquisadores mais jovens estão realizando uma bela experiência de estudos qualitativos que, espero, lancem novas perspectivas mais integradoras do que foi a que esboçamos há 15 anos com a cartografia cultural.

No artigo de Octavio Getino publicado na Revista Observatório Itaú Cultural n.1, de 2007, ele afirma: “Um dos principais desafios que os países da América Latina enfrentam atualmente é o de atualizar e redefinir suas políticas culturais nacionais, em função do desenvolvimento integrado e sustentável. O campo das políticas culturais não se limita, como em outros tempos, às expressões artísticas tradicionais ou à preservação do patrimônio cultural. Ele se estende, cada vez mais, à educação, à ciência, à tecnologia e, também, aos meios de comunicação e às inovações tecnológicas do setor. Isso faz com que essas políticas possam, ou não, ter incidência direta na economia, no emprego, no desenvolvimento nacional, bem como nos processos de integração regional”. Diante de tal afirmação, você acredita que esses desafios apontados em 2007 ainda continuam presentes? E no cenário chileno existe algum indicador relacionado ao impacto das políticas culturais no setor econômico?

Octavio foi um dos nossos “anciãos da tribo” na América Latina e me alegra muito que o tragam à nossa conversa. Seu modo de projetar os desafios das políticas culturais é próprio dessas gerações que se formaram em um continente que estava pensando a si próprio e que, apesar dos retrocessos derivados das ditaduras e de suas agendas primitivas, conservaram o melhor do espírito da época. Refiro-me ao período dos anos 1950 aos anos 1970. Atrever-se a pensar na “periferia” a partir da “periferia” e sempre sonhando. Compartilho com Octavio a necessidade de ampliarmos as políticas e as institucionalidades com base nas artes e nos patrimônios, bem como as definições do modo como queremos “ser e estar juntos”, e agora mais do que nunca devemos fazê-lo como continente, porque este tem as melhores reservas cognitivas para sair do atoleiro mundial de maus-tratos à natureza em que nos encontramos. Se 241 grupos indígenas têm sobrevivido na Amazônia e estão chegando aqui, não podem não ser uma “veia diamante” de conhecimentos, como chamo essas reservas.

As políticas culturais para a América Latina nos próximos decênios devem incluir todos os cidadãos como produtores de símbolos e de convivência, e devem fazê-lo a partir de uma perspectiva regional. A integração cultural está ocorrendo e, se os governos ou seus organismos intergovernamentais não a priorizam na agenda pública, vamos ficar para trás na sociedade. Eu me atreveria a dizer que, atualmente, um peruano residente em Santiago do Chile sabe mais de integração cultural latino-americana do que um diplomata a quem pagamos para isso. Perdão pela digressão um pouco anarquista, mas creio que é assim tão urgente o que levantou já há alguns anos nosso querido Octavio Getino.

Para fechar, você pergunta sobre as mediações econômicas da cultura. Em 2001, começamos a trabalhar nelas com os contadores nacionais do Banco Central do Chile. Desde então, já foram realizados três estudos com diversas ênfases metodológicas ou políticas, mas diria que essa estratégia do decênio passado, de obter cifras macroeconômicas para negociar o aumento dos orçamentos para o setor, funcionou. No caso do Chile, creio que em 1996 o valor agregado aportado pelo PIB era de 1,3%, que não se aproxima dos impactantes 14% dos chineses, mas coloca a cultura acima de áreas economicamente bem dinâmicas, como a pesca. Em contrapartida, subimos os orçamentos setoriais, mesmo que não tenhamos nos aproximado do 1% desejável. Para 2015, estamos com 0,4% do total do gasto público.

Desde 2009 existe o Sistema de Informação Cultural do Mercosul (Sicsur), cujos países integrantes são Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. A construção desse sistema vem para suprir a carência de dados válidos para a institucionalidade e da gestão cultural desta região. Com a finalidade de melhorar as políticas culturais, esse sistema permite consultas abertas dos cidadãos e de gestores culturais, fornece informações a pesquisadores e estudantes etc. [Sistema de Información Cultural del Mercosur, acessado em 19 maio 2015.] Você acredita que essas ferramentas permitem a divulgação do Sicsur e valorizam os levantamentos que ele disponibiliza? Comente.

Bom, vocês irão compreender que, sendo eu uma das cartógrafas mais velhas do continente, todos esses avanços me deixam muito feliz. Nossa primeira cartografia, realizada entre 1997 e 1999, se fez quando não existia internet no Chile nem mapas digitais gratuitos nem GPS nos telefones portáteis. Éramos como pássaros desajeitados que ansiavam levantar voo para olhar de cima nossos territórios e os rastros de nossos povos. Na verdade, meu único sócio cartógrafo na comunidade internacional convencido de que os mapas eram um instrumento napoleônico muito útil para o setor era o britânico Colin Mercer, que morreu de câncer um ano atrás e, estou certa, teria sorrido como eu com essas conquistas regionais.

Porém, creio que sistemas como o Sicsur devem seguir seu curso, pois são muito úteis para as indústrias e para a planificação do nível nacional e federal, mas não para a ação dos gestores locais. Esta é a lição de casa para os próximos anos: dados locais. Dou aulas e reviso cerca de 70 projetos de gestão cultural ao ano. No entanto, tenho muito claro que não podemos profissionalizar nossas políticas culturais se não contarmos com mediações nessa escala local, que é onde se está fazendo a cultura cotidiana, da qual falamos antes.

Em 21 de maio comemora-se o Dia Mundial da Diversidade Cultural pela Unesco. Aqui no Brasil existe a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural, vinculada ao Ministério da Cultura, com o objetivo de fortalecer o protagonismo cultural da sociedade brasileira. [www.cultura.gov.br/cidadaniaediversidade, acessado em 19 maio 2015.] Existe no Chile algum órgão com essa responsabilidade?

O discurso e a valorização da diversidade cultural são algo relativamente novo. Consolidam-se com o informe da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da Unesco, que encerra o decênio, por meio do qual o organismo promoveu um panorama do valor da cultura na agenda pública. Falamos de 1996, quando os discursos sobre a homogeneização cultural como resultado da globalização eram dominantes. O que quero dizer é que o contraste entre o discurso e a realidade faz com que seus efeitos sobre a realidade política e institucional sejam distintos. A isso denomino “viagem das palavras”, o que pode ser mais ou menos eficiente e acelerado.

Essa riqueza da diversidade no Brasil é completamente observável, mas em territórios mais ilhados e com menor diversidade étnica, como é o caso do Chile, não tem sido tão fácil permear e transferir à institucionalidade essa perspectiva e suas potencialidades. É muito mais forte o discurso das indústrias criativas em transformação, e me sinto parte responsável por essa deformação com ênfase no econômico. A saber, creio que não fomos investigadores e acadêmicos suficientemente sagazes para transformar esse discurso da diversidade cultural em uma observação precipitada de saberes ou conhecimentos que constituem essa riqueza.

Falo, por exemplo, da cosmovisão mapuche e de sua adaptação à vida urbana e contemporânea. Eu diria que os artistas resgataram mais e melhor essas expressões de diversidade e que, muito recentemente, instrumentos como Tesouros Humanos Vivos geraram uma visibilidade, um reconhecimento e um registro de práticas em extinção. Mas, para o meu gosto, põe-se ênfase em um conceito de patrimônio como algo antigo ou a ponto de morrer. Eu creio que é o contrário, maior diversidade cultural, maior vitalidade social.

Você acredita que um aumento de ferramentas colaborativas, como o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (Sniic), que está sendo desenvolvido pelo Ministério da Cultura brasileiro, e o uso por gestores culturais, artistas e pesquisadores possam melhorar as informações e os dados coletados para a criação de novos indicadores?

O tema dos indicadores é a chave. Há muitos, demasiados, eu diria. Mas não nos temos dado a tarefa, como setor, de pensar o que queremos medir nesta etapa em que estamos, porque isso nos obrigaria a priorizar e declarar: qual é o equivalente do PIB na cultura? No âmbito internacional, a contribuição da cultura para as metas do milênio tem feito parte desse esforço, mas não são os indicadores da cultura, e sim os de como a cultura pode contribuir para a superação da pobreza, por exemplo. Um bom indicador sintetiza todo um conceito, mas, sobretudo, as intenções políticas que estão por trás dele. A saber, um bom indicador é aquele que diz de maneira fácil algo complexo e que, ademais, declara de maneira explícita as intenções do que mede e/ou valora.

Um indicador tem este duplo sentido: rapidez e transparência. Os informes mundiais de cultura da Unesco, os estupendos estudos da Ifacca [sigla em inglês para Federação Internacional de Conselhos de Arte e Agências Culturais] deram-nos uma imensa caixa deles, mas cada microprojeto deveria considerar o seu. É como dar um bom título a um livro ou a uma canção. Já há um ano venho somente pensando, porque eu ainda não tenho tempo para dedicar-lhe uma ação: quais são os três indicadores que nos permitiriam criar um índice de convivência? Estou convencida de que essa é a maior responsabilidade e contribuição que podem fazer as políticas culturais nesta época de tantas transformações e rígidas estruturas mentais.

Você pode comentar seu artigo “A revolução dos sensíveis”, apresentado no VI Seminário Internacional de Políticas Culturais na Fundação Casa de Rui Barbosa?

A revolução do sensível nomeia uma intuição em que eu vinha trabalhando há uns cinco anos, e foi com minhas companheiras de doutorado com quem mais compartilhei. Uma delas trabalha em novas ruralidades; a outra, em juventudes. As três identificávamos que nossos sujeitos de estudo se localizavam em fissuras contraculturais e nos desafiavam a repensar as coordenadas espaciais e temporais com as quais somente trabalhamos na academia. Também descobrimos que, sem ser feministas, éramos parte desses micromundos, em nossa condição de mulheres muito “feministas e sorridentes” para a academia. Finalmente, as linguagens e os códigos de comunicação terminaram por fechar o círculo, mas foi Jesús Martín-Barbero, interpretando J. Rancière, quem me deu o impulso para propor um nome a esse deslocamento global dos lugares e às linguagens com as quais se expressam os múltiplos sujeitos que marcham contra a corrente do modelo de desenvolvimento que está agonizando.

A tese é: o desenvolvimento cultural dos sentidos alfabetiza massivamente no manejo das múltiplas linguagens dos símbolos, ampliando assim os sensores da racionalidade para a sensibilidade, e, como resultado, muda a percepção do imaginável e do possível (Chartier). Assim é como se manifestam e elucidam os balbucios e os resmungos desses múltiplos grupos. É uma voz clara de um megateórico com um paradigma escrito, unificador e irrefutável, e uma dúzia de discípulos reproduzindo o texto pelo mundo, diante de uma comunidade de receptores que recebem “uma” verdade que lhes resolve todos os problemas.

Com isso, não lanço por terra nem estruturalismos nem historicismos e tampouco pretendo que tudo se resolva em uma hipersubjetividade pós-moderna. Simplesmente sugiro que, na atualidade, há muito mais autonomia perceptiva, reflexiva e criativa trocando-se sem mediadores. Por isso, é um tipo de revolução magmática, que está ali, à vista, em todas as partes e que coloca a cultura em outro nível de responsabilidade a respeito da sociedade. É uma revolução, porque há forças que se opõem às mudanças, mas vão sendo reveladas e não entendem por que suas velhas estratégias de controle funcionam somente por um tempo.