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por Luciana Romagnolli - https://orcid.org/0000-0002-4324-5505

Ao fim do terceiro semestre de emergência sanitária causada pela pandemia de covid-19, quando alguns teatros lentamente retomam a atividade presencial ainda sob a ameaça de novas variantes, é visível como o panorama da produção teatral brasileira e de outros países latinos se reconfigurou em resposta à necessidade de buscar novas vias de sobrevivência artística e econômica. 

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Por um lado, o impedimento de ações presenciais e de aglomerações, somado ao refreamento das viagens, intensificou a exploração das ferramentas digitais, a ocupação das mídias sociais, a formação de redes virtuais e o investimento em linguagens transdisciplinares que já faziam parte dos interesses de artistas da cena, embora de modo mais contido até o início de 2020. 

Por outro, a questão ultrapassa a apropriação dos meios digitais e sua incorporação ao teatro (ou a incorporação do teatro aos meios digitais), uma vez que o isolamento social necessário à contenção do vírus impossibilitou os encontros presenciais não somente com o público, mas também entre os próprios artistas criadores. E o impacto econômico da pandemia – e do modo como vem sendo gerida pelo poder público – fez com que artistas encontrassem dificuldades sérias de manutenção e continuidade de seus trabalhos.

Ramón Verdugo, diretor artístico do grupo mexicano Tijuana Hace Teatro, observa que a situação expôs problemas do estado do artista e do fazer cênico na atualidade, como “a falta de condições estáveis de segurança médica, a precariedade nos modos de produção e a falta de mecanismos de sustentabilidade das companhias a médio prazo, entre outros”. Após 13 meses de confinamento, seu grupo retornou às ações presenciais com a instalação cênica (Re)instalar(nos), no Teatro Las Tablas, em Tijuana, e estreou a peça A veces los perros sonríen, também presencialmente.  

Antes disso, entretanto, a pandemia impôs uma mudança de perspectiva econômica ao grupo. “Tivemos que pausar ou modificar a relação com algumas equipes criativas. Por sorte, algumas delas se mantiveram graças a uma gestão constante que nos permitiu obter apoios econômicos da Secretaria de Cultura do México, que, ainda que provessem só uma parte do orçamento total, nos possibilitaram manter alguns projetos de pé. Com isso, as dinâmicas de trabalho se reorganizaram, equipes foram reduzidas, buscamos a eficiência do tempo e repensamos os próximos projetos do grupo”, relata o diretor artístico.

Os múltiplos caminhos encontrados para a sobrevivência financeira passaram, então, pelo reconhecimento das necessidades técnicas para a adaptação dos projetos artísticos e educativos ao meio virtual (na plataforma Taller THT), pelo fortalecimento da gestão de apoios financeiros, pela busca de projetos individuais e em grupo, pela colaboração com outros artistas e pela realização de festivais, além de participações em debates locais, nacionais e internacionais sobre os horizontes do trabalho teatral.

Chão com areia escura, com tocos de madeira, contrastando com várias pedras brancas distribuídas de forma desorganizada.
"Das formas de produzir um arquipelago sem mar" (2017), Daniela Paoliello (imagem: Daniela Paoliello)

Solução semelhante foi encontrada pelo grupo argentino Timbre 4, que também mantém uma escola de teatro e passou suas ações para o ambiente virtual. O produtor Jonathan Zak conta que, entre fechamentos e aberturas dos teatros naquele país, os esforços voltaram-se, ainda, para a internacionalização, por meio de vínculos com embaixadas e centros culturais europeus e da participação em festivais virtuais, que permitiram a sobrevivência do grupo portenho.

Redes

Voltando ao México, no âmbito coletivo, Verdugo destaca o surgimento, em consequência da pandemia, de “plataformas de diálogo a partir de locais distintos, que culminaram na formação de associações para se pensar as condições teatrais no país”. 

No Brasil, essa organização ainda está por ser feita, embora a precariedade dos modos de produção e a insegurança trabalhista sejam realidades anteriores à covid-19 para a maior parte dos profissionais do teatro.

De acordo com relatos de artistas entrevistados para este artigo, com frequência, as soluções encontradas na pandemia acentuaram as vias que já vinham sendo percorridas: fortalecimento de redes nacionais para alguns; conexões internacionais para poucos; apoio de patrocinadores para outros; e editais públicos para muitos.

Quando os primeiros teatros foram fechados no país, Laís Machado e Diego Pinheiro, criadores da Àràká – Plataforma de Criação em Arte, de Salvador, haviam chegado há poucas semanas da Alemanha, onde apresentaram Quaseilhas. Diante do cancelamento de festivais e residências previstos para os meses seguintes, apoiaram-se no conhecimento de linguagens artísticas digitais e nos resultados de redes que já vinham lançando para fora do Brasil. Algo que, enfatizam, só se torna possível quando a língua estrangeira não é uma barreira. É por esse motivo que os dois pretendem criar estratégias para facilitar a internacionalização de artistas com esse tipo de dificuldade, considerando recortes de classe e de raça.

A proposta da Àràká já previa a criação de redes para conexão de artistas afrodiaspóricos e africanos que atuem em uma zona transdisciplinar de experimentação. Por  isso, as etapas de produção já contemplavam ações não presenciais ou semipresenciais, por meios on-line, para articular artistas de diferentes localidades (como Barbados e Estados Unidos) e como estratégia frente às dificuldades econômicas e de circulação no país. 

Esse saber-fazer contribuiu, portanto, para que a plataforma encontrasse caminhos na pandemia. “Com mais cansaço, mais medo e dificuldade”, segundo Machado, seguiram misturando linguagens e experimentando na lógica de “fazer o que se pode com o que se tem”, aproveitando a abertura de iniciativas do Sudeste para produções do Nordeste, como consequência de os custos de deslocamento terem saído das planilhas orçamentárias nos projetos on-line.

Saúde emocional

Para a sobrevivência financeira, houve momentos em que precisaram triplicar a quantidade de projetos diante das incertezas futuras. O comissionamento de um curta-metragem – Canção das filhas das águas – e de uma residência artística a distância (a alemã Savvy Contemporary), somado à Lei Aldir Blanc em 2021, garantiu as atividades por alguns meses e trouxe um respiro para que pudessem traçar planos futuros, além do imediatismo dos trabalhos breves. 

Laís Machado e Diego Pinheiro enfatizam a importância dessa continuidade também na seara da saúde mental dos artistas, ponto que recebeu atenção dentro dos projetos. “Como você lida com o fato de não só estar distante [dos outros], mas no meio de uma pandemia também? Tentamos não agir como se nada estivesse acontecendo”, diz a performer, considerando os temores e as inseguranças criativas dos envolvidos. “Vivemos uma situação de exceção e isso não pode estar fora da equação”, reitera. 

Preocupação semelhante pautou as ações de Juracy de Oliveira na formação do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, interessado em “criar um lugar seguro de trabalho que ajudasse a encarar o que viria pelos próximos meses (ou anos)”, com artistas de várias partes do país. 

“Este momento, em que estamos imersos em telas e aparelhos, nos pede soluções que impulsionem a saúde coletiva. Tentamos sempre ir por esse caminho, buscando formas de artistas terem seus trabalhos remunerados e, com isso, conseguirem enfrentar os desafios. Nenhuma plataforma ou rede esteve acima do afeto que queríamos continuar trocando apesar do isolamento. Queríamos hackear a presença e, de alguma forma, ir vencendo um dia após outro, só por nos mantermos vivos e em rede”, explica o artista cearense radicado no Rio de Janeiro.

O ponto de partida foi o processo de criação e circulação on-line do espetáculo 12 pessoas com raiva, quando aproveitaram a condição virtual imposta para ampliar as redes de criação artística nacionalmente. Oliveira começou a fazer pontes com outros artistas e agrupamentos e, no segundo semestre de 2020, o coletivo teve um fluxo grande de trabalhos, realizando mostras e festivais como o Orgulhe e o Festival às escuras, o que levou a uma distribuição das funções administrativas e criativas entre os envolvidos.

“Hoje estamos trabalhando em um modo de gestão fluida que funciona a partir dos projetos que vão se apresentando. Continuamos circulando com as experiências do nosso repertório, recebemos grupos e artistas parceires que realizam apresentações em nossas plataformas e realizamos consultorias e operações técnicas sobre as plataformas de transmissão para trabalhos de todo o país”, relata.

A cada fase da pandemia, portanto, os modos de obtenção de recursos sofreram mudanças. “Desde o início, já vínhamos traçando planos de formação de público. As experiências que estrearam até julho de 2020 conseguiram realizar uma arrecadação interessante de bilheteria, talvez pela ‘novidade’. Já no segundo semestre, sentimos uma dificuldade de engajar o público e entendíamos a causa, afinal, também estávamos exaustos. Foi aí que começamos a receber convites para que ajudássemos projetos que precisavam se inserir nos meios virtuais. Com isso, vários integrantes se revezaram em consultorias e operações técnicas”, conta Oliveira. O uso das plataformas por outros grupos também foi importante para assegurar um “caixa fixo” e pagar as despesas com o site e as redes sociais.

A lógica de rede prepondera ainda no trabalho da Selvática Ações Artísticas, sediada em Curitiba. Segundo Ricardo Nolasco, as transformações no modo de gestão causadas pela pandemia foram “tão intensas a ponto de muitas vezes não entendermos quais eram elas”. 

“Nesse período, experimentamos muitos formatos para dar continuidade a uma pesquisa artística que é também uma lógica de vida e de existência que envolve corpos e pensamentos dissidentes”, observa. Por isso, o coletivo não adere ao conceito de “novo normal”, incompatível com a investigação sobre “a anormalidade, o desvio e a possibilidade de encontrar outras existências possíveis dentro da máquina em que estamos inserides”, conforme descreve Nolasco sobre o trabalho da Selvática.

No Paraná, o fechamento dos teatros ocorreu às vésperas da chegada de artistas para uma residência que culminaria na I mostra internacional de cabaret de Curitiba, uma coprodução entre Brasil, México e Argentina que seria apresentada no Festival de Curitiba. Para um coletivo cuja atuação estava baseada na Casa Selvática, ponto de encontro para aglomerações artísticas, e na festa como “agente conector e de criação de espaços de liberdade”, foi – e ainda tem sido – um grande desafio encontrar modos de se sustentar na pandemia. A casa, por exemplo, precisou ser alugada para outros fins.

“Nossa primeira ação foi entrar ao vivo no Instagram no mesmo dia em que a mostra começaria, com um cabaré on-line composto de números das artistas que participariam dessa residência. Essas primeiras ações virtuais eram quase exclusivamente para nos manter em atividade artística e oferecer possibilidades de reflexão e entretenimento em um momento em que toda a população estava em casa e sem saber o que iria acontecer”, recorda Nolasco. “Isso mudou bastante até o presente momento, foram entrando outras questões em jogo, como pagar as contas e tentar transportar as investigações, por tempo indeterminado, efetivamente para o ambiente virtual”, avalia.

Mais uma vez, a pandemia intensificou uma tendência pregressa: “Somos um coletivo grande, com muitas investigações e desejos. Neste momento, acabamos nos organizando em grupos menores relacionados direta e indiretamente à Selvática, como é o caso da pesquisa específica com o cabaré, da Magazine fancha – a revistona da mulher sapatão e de atividades de formação”, conta. 

Com a dificuldade de encontrar dispositivos digitais que abarcassem muitos artistas ao mesmo tempo, além das diferenças de acesso à internet e a equipamentos digitais entre os integrantes, foram testadas diversas plataformas e meios para a realização dos processos criativos e das apresentações: da live do Cabaré voltei (contemplada pelo Itaú Cultural) ao uso do WhatsApp em Aqui estamos futuro!, passando por pesquisas de cabaré, oficinas, residências, saraus, webdocumentário etc. 

“Tivemos alguns apoios pontuais para criação e venda de espetáculos de forma digital e, por último, no final de 2020, conseguimos recursos por meio da Lei Aldir Blanc, mas que serviram quase exclusivamente para pagamentos de dívidas e manutenção do espaço, seguindo ainda longe de uma situação confortável”, diz Nolasco.

Estrutura

Por outros trilhos, a experimentação de linguagens e meios também tem sido o modo de operação do Grupo Galpão nesta pandemia – haja vista o lançamento do média-metragem Éramos em bando e da peça radiofônica Quer ver escuta. Antes disso, no susto, os mineiros realizaram lives, stories e programas de entrevista, até conseguirem se reorganizar para um primeiro espetáculo virtual, Histórias de confinamento. “A estrutura continuou a mesma, mas tudo feito a partir das casas, sem encontros presenciais. Isso causou uma alteração profunda no funcionamento do grupo”, observa Eduardo Moreira.

O coletivo é exemplo de como os investimentos continuados na cultura fazem diferença.

“A sustentabilidade do Galpão se manteve graças à continuidade dos patrocínios. No ano passado, tivemos o da Cemig e, neste ano, além desse apoio, o patrocínio máster da Vale e de outras empresas. Isso nos possibilita manter a estrutura do grupo, o pagamento dos funcionários que sobraram e de um salário-base do elenco. Temos feito muita coisa e estamos encaminhando uma série de projetos que chamamos de Dramaturgias”, conta o artista.

Mesmo com recursos, “os desafios são infinitos” na tentativa de sobrevivência em meio digital, conforme observa Moreira. “É extremamente dispersivo da atenção e da concentração. A falta de presença traz uma dificuldade enorme, naturalmente não agrega, separa as pessoas. Teatro virtual é o que temos para o momento, então, só nos resta reafirmar a nossa existência, continuar fazendo da forma mais intensa, com a maior qualidade possível, com essas ferramentas que nos sobraram, e seguir em frente.” 

Para ele, diante do “esvaziamento dessa possibilidade de um lugar do teatro, que está sendo contestado de uma maneira vil e repugnante pelo poder no Brasil, o que nos resta é continuar lutando e procurando firmar o nosso lugar de levantar o imaginário das pessoas, a capacidade de recriação do mundo a partir da arte, da poesia e do teatro, que é fundamental”.

Uma mulher vestida com roupa preta segura uma pedra branca de tamanho médio, logo abaixo tem várias outras pedras brancas, ao fundo aparece a sombra desta mulher na areia.
"Das formas de produzir um arquipelago sem mar" (2017), Daniela Paoliello (imagem: Daniela Paoliello)

Memória

Cristiane Zuan Esteves, do grupo Opovoempé, resistiu a levar as intervenções e peças para o meio on-line por causa da complexidade desse ambiente: além da dificuldade de alcançar o público por conta das bolhas criadas pelos algoritmos, havia também a interferência das mediações digitais no trabalho. Por isso, ela buscou outra saída.

Frente aos compromissos firmados e à impossibilidade da realização de apresentações presenciais, o grupo paulista optou por projetos relacionados à preservação de sua história. Assim, um convite do Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp) para a celebração da efeméride da chamada batalha da Maria Antônia gerou a criação de um site para expor o arquivo documental da pesquisa da peça-instalação Arqueologias do presente – a batalha da Maria Antônia (2013), uma vez que a diretora entendeu que não era possível refazer o trabalho on-line.

O aniversário de 15 anos do Opovoempé motivou a realização de uma semana de comemoração, custeada pela Lei Aldir Blanc. “Mais uma vez, optamos por não fazer as peças, mas conversar com as pessoas que são e foram nossas parceiras nesse tempo”, diz Esteves. Até que os recursos da lei chegassem para cobrir despesas fixas, as integrantes do núcleo artístico precisaram bancar do bolso o local de armazenamento dos materiais dos trabalhos anteriores.

Em paralelo a isso, cada uma seguiu seus projetos pessoais. O de Esteves foi a estreia da peça A história de Baker em versão on-line, com recursos do Prêmio Zé Renato de 2019, após tentativas de prorrogação na esperança de apresentá-la presencialmente, até que se encerrasse o prazo para o uso da verba. 

“Foi tudo feito a distância, sem ninguém estar junto em uma sala de ensaio ou na casa-cenário que usamos. Foram muitos ires e vires, grupos e grupos de WhatsApp para tratar de cada área técnica e criativa. Eu e Beto Matos, com muita mão na massa, mais do que acontece normalmente, montávamos a luz e mostrávamos para a iluminadora; inventávamos onde e como [filmar] na casa e mostrávamos para o cenógrafo; e eles davam feedbacks. Um tempo muito mais lento para as coisas ficarem prontas. Ainda bem que temos uma equipe incrível de transmissão com a Michelle Bezerra”, relembra a diretora e atriz. 

Esteves ainda quer fazer a peça ao vivo, com as cenas de relação com o público que não entraram na versão on-line. Enquanto isso, Opovoempé segue com custos cortados ao máximo e sem saber como será a sustentação econômica até o seu retorno às atividades presenciais – realidade comum a tantos outros artistas da cena brasileiros.

Como citar este artigo

ROMAGNOLLI, Luciana. Conexões e continuidades. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. Disponível em: [https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/conexoes-continuidades-teatro]. Acesso em: . DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30.04


Luciana Romagnolli é jornalista e pesquisadora de teatro. Doutora em teoria e prática do teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), atuou como repórter nos jornais Gazeta do povo e O tempo. É fundadora e editora do site Horizonte da cena, no qual também escreve, e coordenadora de crítica da mostra Janela de dramaturgia. Foi curadora do eixo Olhares críticos da Mostra internacional de teatro de São Paulo (MITsp) de 2017 a 2020 e do Festival internacional de teatro palco & rua de Belo Horizonte (FIT-BH) em 2018. É autora dos livros O mistério de haver olhos (Quintal Edições, 2021) e Hoje, não? (Editora Urutau, 2021). Contato: lucianaromagnolli@gmail.com.

 

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